sábado, 13 de dezembro de 2014

Politizar o veganismo

O termo "veganismo"  tem sido utilizado majoritariamente como asbtenção pessoal de produtos de origem animal. Muitas vezes ainda se associa a ideia de veganismo a determinada crença, determinada concepção sobre energia, espírito, corpo etc. Não podemos correlacionar veganismo a nenhuma vertente religiosa/espiritual, não se falamos deste enquanto um movimento social. Ademais, no bojo de movimentações pró-sustentabilidade o veganismo tem se mostrado uma prática extremamente individualista. Há algo herdado do voluntarismo (um prato cheio para o modelo liberal de sociedade) que faz com que pensemos no veganismo unicamente como mudança de si na relação com os animais. Não é suficiente, precisamos ir além.
"coma os seus vegetaaaaaaaaais"
Politizar o veganismo significa algumas coisas. Politizar o veganismo é inseri-lo no seio de debates sobre raça, classe, gênero, dentre outras categorias que estabelecem determinadas relações de poder em nossa sociedade. É também pensar no caráter coletivo do veganismo, isto é: não faz sentido que eu seja "100% vegano" e todas as outras pessoas não o sejam. É ainda tomar as relações sociais em sua totalidade, levando em conta processos e relações de produção. Por fim, politizar o veganismo tem um caráter republicano: temos a obrigação de trazer o veganismo para dentro das estruturas dos processos de tomada de decisão. Em resumo, é preciso que se diga de uma vez por todas: ou o veganismo se politiza ou não vale de nada.
libertação animal * libertação humana
Antes de mais nada temos que definir do que estamos falando. Veganismo não é vegetarianismo, ou seja, veganismo não é dieta.  Eu costumava dizer que veganismo é a tentativa constante de se livrar de tudo o que provém de exploração e morte de animais. O que é acertado, se pensarmos veganismo como prática individual. Veja que essa asserção, além de individualista, é negativa: para ser vegan basta não fazer alguma coisa. Uma noção politizada de veganismo é, necessariamente, coletiva e ativa. Proponho definirmos veganismo, então, como luta pela libertação animal. Com base nessa definição podemos prosseguir para a explicação dos quatro parâmetros de politização do veganismo.
Em primeiro lugar uma abordagem interseccional (que relaciona categorias como classe, gênero, raça, sexualidade, nacionalidade e tantas outras) deve ser o ponto de partida para nossas discussões. Tomada como pedra de torque, a insterseccionalidade nos mostra que pensar o veganismo de maneira individualista é, antes de tudo, promover desigualdades existentes em nossa sociedade. Tem-se falado muito dentro do movimento que veganismo é também libertar seres humanos. Porém não podemos parar nas expressões mais evidentes das opressões. É opressivo também quando se ataca diretamente religiões de matriz afro-brasileira em nome do veganismo. É opressivo quando eu, do auge da minha branquitude classe média universitária, aponto em pessoas pretas, pobres e periféricas como elas são más. Isso não quer dizer que pessoas negras e/ou pobres são menos capazes de serem veganas. Quer dizer que estas pessoas tem que se livrar de grilhões que eu nunca tive até adentrar o veganismo. Quer dizer que algumas destas pessoas não tem o mesmo acesso que eu tive a informações para se tornarem veganas (e não, ter "tudo na internet" não é suficiente, há linguagens e ambientes de convivência que facilitam ou dificultam o acesso de uma pessoa ou outra às informações, dependendo de seu local na estrutura social). Nada disso quer dizer, todavia, que devemos abandonar o veganismo, mas, ao contrário, tornar o veganismo interseccional. Devemos repensar nossa luta específica e ajudar no combate das diversas opressões. Ainda sobre esse tópico vale a pena conferir as relações entre sexismo e exploração animal trazidas pela autora Carol J. Adams em A política sexual da carne.
"não sou assassina. meramente previno indivíduos gananciosos de espoliarem o planeta."
Seguindo o argumento, postulemos que o veganismo é luta coletiva, e não individual. A libertação animal só será atingida quando os seres humanos pararem de explorar animais. Eu abdicar de produtos de origem animal não é suficiente. Nosso papel, enquanto indivíduos, tem a ver muito mais com a coletivização do veganismo. Precisamos criar as possibilidades para que as pessoas abdiquem dos produtos da exploração animal. Isso significa que temos que difundir informações, mas não só. Significa que devemos lutar para que as diferentes pessoas tenham igual acesso a essa abdicação dentro de suas condições materiais concretas. Neste ponto é importante tecer uma crítica contundente à elitização do veganismo. Elitização que não corresponde apenas ao alto preço de produtos com o selo oficial de "vegan", mas também a alternativas veganas de estilos de vida que demandam muito tempo. Numa sociedade capitalista tempo é, sim, um bem valioso e tempo livre um bem desigualmente distribuído. Coletivizar o veganismo passa por coletivizar os diversos bens (materiais e simbólicos) por meio dos quais se pode acessar o veganismo. Coletivizar o veganismo significa exatamente centralizar como principal pauta do movimento a difusão universal da luta pela libertação animal. É preciso que todas as pessoas lutem contra a exploração animal. Chegamos aqui a um embate entre relativismo e mudança social, sobre o qual não pretendo tecer muitos comentários neste momento, somente que em vez de se desistir do veganismo precisamos ouvir perspectivas veganas desde os mais variados locais de fala - o que dizem sobre o assunto os candomblecistas? e as feministas islâmicas?

Até aqui compreendemos que as relações entre seres humanos são demasiado complexas e que em vez de reduzir esta complexidade devemos partir dela em nossa luta pela libertação animal. Para além da adesão do movimento há o próprio enfoque de combate do movimento. Quero dizer, o veganismo possui determinadas pautas - em geral dentro da relação consumidor-produto - que devem ser postas em cheque, ou, ao menos, descentralizadas. Não é suficiente fazer boicotes quando o conceito de "produto vegano" não leva em conta questões como o uso de agrotóxicos. Não tanto pela questão da saúde da pessoa consumidora, mas pelo modo como os agrotóxicos afetam diversos animais e também os produtores. Agrotóxicos são um ponto crítico, mas olhemos para toda a estruturação do agronegócio. Criemos um ponto de diálogo entre veganismo e agroecologia. Não podemos falar em produção vegana quando os elementos dessa produção (ingredientes, máquinas, espaço) provêm, ainda que indiretamente, da exploração animal e mesmo humana. Politizar o veganismo é refletir desde um veganismo sistêmico, isto é, que leva em conta dois aspectos: a exploração promovida pelo sistema capitalista e o emaranhado de relações predatórias de produção. Sem uma reflexão sistêmica de nossa luta caímos no risco de achar que estamos isentos de participação em sistemas de dominação.
100%?
O último parâmetro de politização tem bastante a ver com o que geralmente se entende como "política". Falo aqui de políticas institucionalizadas. Na construção de nossas diversas lutas não podemos esquecer que políticas institucionais são, por vezes, as formas mais eficientes de difusão. Quando vivemos sob um Estado, por exemplo, estamos sujeitos às leis estabelecidas dentro daquele Estado. Obviamente devemos questionar tanto a eficácia quanto o processo de elaboração das leis. Devemos questionar também sistemas eleitorais e as pessoas que ocupam os cargos de poder. Questionemos também o próprio Estado. Lutar contra o Estado, em minha visão, não é só lutar por fora do Estado, mas também ocupá-lo. Em vez de um veganismo só de abstenções, façamos também um veganismo ativo: adentremos os espaços de tomada de decisão que influem diretamente sobre a vida coletiva para difundir a luta pela libertação animal. Criemos leis que proíbam a realização de testes em animais, façamos o restaurante de nossas universidades e os refeitórios das escolas adotarem opções vegetarianas de refeições, enfim, exploremos da política institucionalizada (não só a estatal, ressalte-se) o que ela tem de mais poderoso: seu alcance na redefinição de condições materiais.

sobre a centralidade da carne
Sem encerrar o debate, faço agora uma defesa do caráter micropolítico do veganismo. Chamo de "micropolítico" para não confundir com a perspectiva individualista que venho criticando ao longo deste texto. Alguns pontos me levam a pensar que o foco no vegetarianismo estrito como dieta faz algum sentido. Penso aqui no lugar que a alimentação ocupa em nosso sistema simbólico, sendo muitas vezes a parte mais tensa do debate sobre os limites entre natureza em cultura. É sobre a naturalização da concepção do ser humano como ser onívoro que são erigidos os pilares de todo o sistema de dominação (e reafirmação ideológica da dominação) de humanos sobre animais. Além disso, fazemos certa associação entre o que consumimos (especialmente o que adentra nossos corpos) e o que somos. É neste sentido que parar de comer carne se torna uma postura ética e "micropolítica". Isso é importante, acho que acaba se tornando uma forma de contrapor a base de sustentação simbólica de toda a exploração animal. É importante, mas não suficiente. Por todos os motivos que aqui enumerei  e por outros tantos. É necessário politizar o veganismo.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Segurança pública e a luta de classes

Segurança pública é sempre tema de suma importância para quem administra determinada unidade política. Não se pode governar sem falar em segurança pública. No geral o que se discute é como combater a violência e a criminalidade, uma constante preocupação do cidadão de bem. Mais polícia, menos bandidagem, talvez esse seja o lema. Está instaurada na sociedade uma luta de classes: mocinhos x bandidos. Define-se o nós e o eles, os que merecem ser cuidados e os que merecem ser punidos. Tudo em nome da lei. Vivemos num Estado liberal.
proteção?
Comecemos pelo reconhecimento de que a segurança pública não visa combater todos os crimes, mas especialmente assaltos e homicídios. Esses são os índices que acabam por caracterizar algumas cidades como mais seguras do que outras. Se é a necessidade de proteção que cria o Estado, no fim é para a proteção de nossos bens que ele serve. O Estado é guardião da vida e da propriedade privada. Daí a expressão "Estado cão-de-guarda": este só é acionado quando algo dá errado na convivência entre as pessoas.  O aparelho repressivo do Estado - em nosso idioma: a polícia - é mesmo o próprio Estado em seu esplendor. Ainda, na clássica assertiva weberiana: o Estado reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. Ele bate, nós aceitamos.
BAN-DI-DO
O bandido é o inimigo. Bandido. Eliminemos essa palavra maldita de nosso vocabulário. Criminoso/a, é o que existe. Uma pessoa comete crime e é, por isso, criminosa. "É", ou está. Porque se vivemos num Estado democrático de direito que assim ordena, pode-se pagar pelo crime, pode-se reabilitar-se, pode-se "descriminar-se". "Bandido" é a ideia de que se é, em essência, criminoso. Fala-se em bandido como alguém que surge e vive no crime, do crime e para o crime, sem possibilidades de mudança. Simplesmente pedir mais polícia para combater o crime é reforçar uma concepção implícita na ideia da bandidagem: a de que é preciso eliminar o inimigo. Ideia que cabe em "Estado", mas não em "democrático de direito". Se existe uma legislação que prevê a reforma do sujeito, sua reinserção, só polícia não é suficiente e justiçamentos com as próprias mãos são inconcebíveis. 
linchar pode NÃO #dicasruthinha
Num Estado liberal a luta de classes é de todas as formas encoberta. As políticas de segurança pública, são no geral, proteção das classes dominantes e encarceiramento (quando não assassínio) das classes dominadas. E a ideologia atua de maneira tão absurda que quaisquer propostas de resolução de problemas relacionados à violência e à criminalidade que não envolvam a prisão - o cerceamento do tempo - são vistas como irreais e brandas. Só conseguimos pensar através da racionalidade penal moderna - em resumo: combater um mal com outro mal. E o aumento do policiamento continua enviando a juventude preta e pobre para a cadeia. Pensar a questão da segurança pública descolada da questão de classe é ignorar a complexidade do problema e partir para soluções apressadas e ineficazes.
do genocídio da juventude negra
Uma nova forma de se pensar segurança pública deve partir de alguns princípios, quais sejam: (1) o/a criminoso/a não é inimigo/a do Estado; (2) o Estado não pode ser acionado somente para proteger a propriedade privada; (3) o Estado não pode ser seletivo na punição de crimes - não deve selecionar criminosos/as; (4) as punições não devem servir para suprir desejos individuais, mas para cumprir a lei; (5) a prisão não é nem o único, nem o mais eficaz mecanismo de punição; (6) não existe segurança real em meio à luta de classes; (7) não existe segurança (nem para opressores, nem para oprimidos) quando existe opressão.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A nova política e a política do real

Em 2010 acompanhei as eleições presidenciais pela primeira vez com afinco. Já naquela época Marina me parecia uma opção bacana frente à polarização PT X PSDB. Hoje discordo de muitos pontos defendidos por ela (como os plebiscitos em relação ao aborto e às drogas), consigo enxergar melhor algumas contradições e, acima de tudo, confio muito menos nesse tipo de representação. Recebi com curiosidade a ideia da Rede Sustentabilidade enquanto uma tentativa de reabilitar a representação (um partido anti-partido, como li recentemente). A aliança de Marina com o PSB foi uma surpresa.
Uma primeira observação deve ser feita às críticas vazias a Marina. Primeiro, Marina está longe de ser fundamentalista religiosa e qualquer vislumbre de seus posicionamentos elucida a questão. Aliás, parece que o debate se formou de um modo tal que ter uma religião parece mais problemático do que o que se faz politicamente com isso. A presença de Dilma na inauguração do Templo de Salomão não é tida como uma ameaça ao Estado laico. A posição de Aécio contra o aborto não é chamada de fundamentalista. Prosseguindo, é preciso se questionar se a total esquiva de presidenciáveis de certos temas não seria um dano maior a essas pautas do que as propostas de plebiscito de Marina (o que, concordo, é escolher, no máximo, o menos catastrófico). A essas críticas tão ignorantes que nada, ou muito pouco, acrescentam ao debate, não vale a pena nos determos.
fundamentalista, eu?
A morte de Eduardo Campos torna a face de Marina de novo exposta. E toda a ordem de sentimentos de um luto repentino, somados aos seus discursos sobre a "nova política", colocam agora Marina como uma possibilidade cada vez mais real para a presidência da república. Entretanto, desde sua aliança ao PSB, passando pela escolha de Beto Albuquerque como vice e sua amizade pessoal-profissional com Neca Setubal, a pergunta que sempre entra no debate é: como fazer uma nova política pelos meios da velha política? O que de novo de fato Marina apresenta?
na saúde e na doença?
Como diria qualquer analista da política, se Marina quer se eleger, é preciso que jogue o jogo da realpolitik, a real política. Antes da nova política, existe a política do real. É nesse sentido que as propostas super-progressistas de Luciana Genro e mesmo suas críticas ferrenhas a Marina "falham": Genro não atinge nem 1% dos votos. Deve-se pontuar, todavia, que seu papel nas eleições é importantíssimo, como foi o papel de Plínio em 2010. Luciana Genro propõe, de fato, um governo baseado numa nova política e consegue apontar os problemas nas diversas candidaturas. Luciana diz o que ninguém tem coragem de dizer. O custo de toda essa coragem, no fim, é sua ínfima expressividade.
a salvação
Se Marina entra de cabeça na política do real, qual a diferença entre ela, Dilma e Aécio? Ainda que o programa de sua candidatura só saia na sexta, é possível pensar alguns pontos a partir de suas falas. Desde o início Marina continuamente repete que sua aliança com o PSB é "programática". Quando perguntada sobre como governaria sem o Congresso, Marina também responde que o fará em torno de alianças para um programa. "Governar com os melhores do PT, com os melhores do PMDB e com os melhores do PSDB" tem esse sentido. A principal proposta de Marina é também sua maior utopia: driblar o toma-lá-dá-cá por meio da costura de um programa capaz de unificar a esquerda, a direita e o que está ao centro. O que resta saber é quais seriam as propostas possíveis de promover tamanho consenso.
hmmmmmmmmmmmmmm...
Dentro da política do real ainda é preciso pensar no papel de Marina em 2014. Jogando com o personalismo da política brasileira, a candidata conseguiu construir uma campanha sobre si (e sobre o falecido Eduardo) e fugir da rinha PT x PSDB. Aliás, é na tenativa de superação desse dualismo que um possível governo de Marina parece interessante. Marina propõe a retomada de uma economia psdebista somada a uma política social petista. Sem a "situação pela situação" e a "oposição pela oposição" Marina tenta se safar do que para muitos é a própira política: a definição de amigos/inimigos. Um governo de Marina parece tão incerto que torna imprevisível também o futuro da centro-esquerda e da centro-direita. No meio do caminho, o PSB deve perseguir o crescimento construindo alianças. Existe uma abertura para a reorganização de toda a lógica partidária. Pode a esquerda se radicalizar e, talvez, se unificar?
piu
Aqui entra um ponto crucial que se tem deixado de fora do debate: o papel da sociedade civil. O PT foi um partido erguido pela militância, com a articulação dos movimentos sociais. Quando chega ao governo, entretanto, observa-se o fenômeno da cooptação. Movimentos tocados pela base do governo encontram espaço no Estado. A princípio, isso é positivo porque pauta políticas públicas. Quando, em nome da governabilidade, porém, o governo contraria os interesses dos movimentos sociais, há pouca reação. O problema de um governo à esquerda, com infiltração em movimentos organizados, é que só se aceita a crítica intra-partidária e pouco se vê de grandes atos, grandes mobilizações. O governo Dilma é exemplar. O veto da presidenta ao kit anti-homofobia não encontra grandes respostas do movimento LGBT. O governo Dilma foi o que menos desapropriou terras em 20 anos e não vemos um contraponto radical do MST. A continuidade do PT no governo pode significar a permanência das coleiras nos movimentos ligados à base do governo - porque, justifica-se, é melhor essa esquerda no poder do que a direita.
2013, Brasil
Um governo de Marina Silva, do PSB e da Rede seria um governo que teria que lidar com as ressonâncias das mobilizações apartidárias (e mesmo antipartidárias) que ocorreram em junho de 2014 e também com os movimentos da esquerda partidária - tanto os ligados ao PT, quanto alas mais radicais. Estes últimos podem se fortalecer no momento em que suas lutas representam não só a reivindicação de suas pautas específicas, mas também a tentativa de conquista do poder. As alternativas de Marina seriam atender às vozes das ruas ou repimi-las - o que se mostraria um trabalho hercúleo para quem chega ao governo sem muitas parcerias e sem grande domínio da estrutura do Estado. Resumindo, ou os movimentos enfraquecem sem o poder e se calam, ou, ao contrário, se fortalecem por não terem o peso do governo e se radicalizam. Ainda que não pelos caminhos por ela desejados (como a constituição da Rede, o partido-reforma), Marina pode trazer um novo momento de difusão das participações e das representações no Brasil.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Em defesa da ANECS, apesar de tudo

Essa postagem é, em partes, um diálogo com essa crítica à Articulação Nacional de Estudantes de Ciências Sociais (ANECS), mas também uma tentativa de resgate da história da entidade e uma contextualização de sua existência presente. Sobre o fio condutor da crítica, em relação a casos de machismo, espaço auto-organizado de mulheres e feminismo, não me deterei; porque o assunto não me compete diretamente e porque tais debates já foram realizados com maior competência em outros momentos - dentro e fora da entidade e dos eventos desta -, inclusive nesta carta.
ENECS BH - 2011
Comecemos pelo começo: a ANECS surge no Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Sociais (ENECS) em 2011, em BH, numa tentativa de, como seu próprio nome deixa entrever, articular estudantes de Ciências Sociais de todo o Brasil. Vê-se, então, que diferente da maior parte das entidades de outros cursos, a ANECS é recente. Nomeando o que deve ser nomeado, a entidade surge com grandes esforços especialmente do Levante Popular da Juventude (que era, a propósito, parte influente da Comissão Organizadora do evento). Daí até 2012 o Levante foi bastante empenhado na sua missão de espalhar a palavra: estava criada nossa entidade. Estudantes de Ciências Sociais, uni-vos mais uma vez!
ENECS Santa Maria - 2012
O encontro nacional do ano seguinte, realizado em Santa Maria - RS, tinha como objetivo a definição do que, de fato, seria a entidade. Ok, éramos todxs ANECS, mas que raios significava se articular? Horas e horas e mais horas (cerca de 14!) de plenária e terminamos a redação de nossa Carta de Princípios. Eu, novato de movimento estudantil, começava a ver, nesse meu primeiro encontro nacional, uma disputa ferrenha entre militantes do PSOL (na época pelo Rompendo Amarras) e do Levante. Tínhamos princípios, mas a ANECS estava em guerra.
CONECS Vitória - 2013
A disputa talvez tenha atingido seu ápice no Conselho Nacional de Estudantes de Ciências Sociais (CONECS) Vitória - ES (no começo de 2013). Esse foi um evento importante, porque daí foi que saiu a proposta de estatuto para a entidade. Com todos os conchavos e tramóias, mas também com muita discussão (produzimos acúmulo, alguns diriam) e muita vontade, a ANECS parecia agora um gigante, tomando forma. O que se via nos meses seguintes, entretanto, era um distanciamento cada vez maior da "militância orgânica" - como chamamos no estatuto, posteriormente, aquelxs estudantes que permaneciam e se empenhavam na construção da ANECS. De todos os encaminhamentos do CONECS, não se viu nem a relatoria. O que pensamos ser, finalmente, a reorganização de estudantes de Ciências Sociais começava a esmorecer. Mas ainda havia o estatuto...
ENECS Fortaleza - 2013
O ENECS Fotaleza foi a prova cabal do que os encontros regionais já demonstravam: o Levante havia abandonado a ANECS. O PSOL também já não se importava muito com a entidade. O que aconteceu foi que toda essa militância que imaginávamos ser orgânica - e que na verdade era comprometida apenas com seus patidos/coletivos - inflou a ANECS e, ao sair, não deixou qualquer acúmulo para suas respectivas escolas. Ainda assim, o encontro nacional aconteceu, o estatuto foi aprovado. Formalmente, a ANECS começava a existir de fato. E agora?
Articulação Nacional de Estudantes de Ciências Sociais
Saímos desse ENECS com uma Coordenação Nacional (CN) que nunca existiu realmente, apesar dos esforços. No fim, parece que não havia mais escolas organizadas enquanto ANECS. Articular... quem? Para que mesmo? Nesse momento nem mais a militância orgânica não-partidária tem mais forças. É nesse contexto que, em meio a diversas confusões, o CONECS 2014 acaba não acontecendo. Há uma falta de comunicação nacional. Os encontros, regionais e o nacional, são a última esperança de tentar resolver tudo o que tinha para ser resolvido. A última chance de, talvez, reconstituir militantes que se comprometam com a ANECS.
Sem fotos do grupo...
Findo este último ENECS, lendo ambas as cartas já citadas e ouvindo relatos de amigxs, concluo: a ANECS falhou. Apesar de tudo, no entanto, sinto que é preciso defender a entidade, seja pelo meu empenho nesses últimos anos, seja pelo empenho de dezenas de colegas, seja porque sua falha é o motivo mesmo de sua necessidade: estudantes de Ciências Sociais de todo o Brasil, precisamos nos articular! Obviamente, esse é um clamor de certo modo vazio. Aí é que está: a ANECS está aí para definirmos o que ela vai ser - agora na concretude, e não mais nas formalidades. Se houve "autoconstrução de uma pequena burocracia estudantil" em todo esse processo, essa se deveu, por um lado, por nossa obstinação com a concretização da ANECS (que nos parecia uma travessia etapista: primeiro a carta de princípios, então o estatuto, daí a luta) e, por outro, ao próprio desinteresse de grande parte de cientistas sociais em formação em se envolver com uma entidade da própria categoria. A crítica de colegas da UNILA e da UFG é extremamente pertinente, porém acaba por se perder ao tentar enfatizar a usurpação de uma burocracia partidária dos objetivos da ANECS - o que, se existiu, afirmo categoricamente: não existe mais. O que eu responderia a essxs colegxs é: o que vocês criticam não é a ANECS, mas o fato desta nunca ter conseguido articular concretamente estudantes de Ciências Sociais de todo o país para que se envolvam em lutas, com nossas pautas, com nossos temas. É preciso que a ANECS retome seus princípios, seus objetivos, não que ela deixe de existir.
Yasmim, Polly, Saulo, Luana, Gabs... <3
Esse texto é o começo de uma despedida pessoal da entidade. Pode ser clichê dizer isso, mas militar na ANECS me proporcionou muitos aprendizados e me fez conhecer muita gente bacana por esse Brasil. As longas plenárias, as viagens mais longas ainda, os debates, as inimizades, as aporrinhações... tudo isso foi fundamental na minha formação - acadêmica e militante. Espero que tenha conseguido também construir algo de postivo para o movimento estudantil de Ciências Sociais. Enfim, se a ANECS dará certo ou se foi uma utopia ousada demais para ser real, só a história nos dirá. História que ainda está por ser escrita. E meu adeus é também um convite: estudantes de Ciências Sociais desse Brasil enorme, uni-vos e lutai. Que as Ciências Sociais voltem a ser perigosas!

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Amor livre não é amor liberal

Relendo o outro post sobre amor livre e pensando em questionamentos sobre o tema que surgiram numa roda de conversa, além dos que tenho visto pela internet, resolvi tentar delinear melhor o que entendo por "amor livre". A começar, devo dizer que me agrada a expressão (em detrimento de outras como poliamor e relações livres) porque tanto "amor" quanto "livre" deixam certo espaço para a elaboração de novos significados. E especialmente porque tocam nos dois pontos cruciais do debate: amor e liberdade.
ah, o poder...
Como enxergo as coisas, antes de mais nada amor livre é um posicionamento político. Político num sentido mais geral, mais difuso, mas que também tem relações com a Política com P maiúsculo. Não aponto o dedo para tais e tais relações específicas, nem tento moldar o conceito pelas minhas relações (ainda que isso seja, em certo sentido, inescapável). Pensar o amor livre como posicionamento político é pensar que vamos discutir para além do eu - ou mesmo quando formos discutir o eu, discutiremos suas implicações políticas. Esse posicionamento só faz sentido, afinal, porque se remete ao todo, a uma mudança estrutural. Pode o amor mudar o mundo?
será mesmo?
Termino o post anterior dizendo que não há possibilidades de um amor realmente livre sem uma luta interseccional. E o título desse post é exatamente "amor livre não é amor liberal". Se antes minha ênfase era na libertação do amor, proponho questionar agora o que pensamos por liberdade. Oras, como vi muita gente pontuando de forma bastante acertada, a mera saciação do prazer (especialmente para homens) não muda muita coisa em relação à Monogamia. Monogamia sempre pressupôs traição, efetivamente a masculina. A vadiagem masculina é absurdamente incentivada no nosso projeto heteropatriarcal de sociedade. Até que ponto uma proposta de mudança afetivo-sexual que apregoa pegação generalizada pode ser um projeto revolucionário?
muito subversivo... ou não
Podemos pensar aqui em pessoas que se encontraram em relacionamentos abusivos. Pessoas vítimas de estupro. Tragamos à tona a reiteração secular da figura da "mulata" como aquela com a qual só se deve ter relações sexuais eventuais. Isso sem contar qualquer sujeito tido como abjeto, de pessoas gordas a pessoas trans, passando inclusive por pessoas deficientes. Qual o sentido de propor a essas pessoas que saiam a fazer pegações? Que não se envolvam profundamente emocionalmente? A partir de que lugar dizemos que essas pessoas devem se "libertar" do amor? Isso tudo se complica ainda mais quando percebemos que concretamente círculos RLi/poliamor/amor livre apresentam pouca diversidade.
além do amor, o Estado
Amor livre não pode ser amor liberal porque senão não se põe como um verdadeiro contraponto à opressiva instituição que é a Monogamia. É preciso construir um novo amor que se paute numa liberdade que não seja a liberdade negativa do liberalismo, que só diz que todo mundo pode tudo, desde que consentido. Ter a liberdade de escolher é importantíssimo, mas não é suficiente, não para quem tem muitas outras correntes das quais se libertar. A mera satisfação do desejo sem a mudança da realidade concreta não difere nada do individualismo que o capitalismo hoje nos propõe (ou impõe, para ser mais preciso).
revolução só se faz com amor. e não há amor sem revolução.
Uma proposta realmente revolucionária de amor livre parte deste enquanto um posicionamento político que tem em seu horizonte um novo projeto de liberdade. Mais do que liberdade para escolher, é preciso que haja possibilidades concretas - e, porque não: materiais - para tais escolhas. Liberdade é sempre o tema da política, não se deixem enganar. É preciso que se ponha em pauta, todavia, a seguinte questão: todas as pessoas, em sua diversidade, tem igual liberdade para escolher? Amor livre é um pontapé direto na cara da Monogamia enquanto instituição e todas as opressões que ela institucionaliza. Do direito à herança ao heterossexismo, passando pela solidão das mulheres negras, a Monogamia anda de mãos dadas com os diversos sistemas de opressão: reiterando-os, acentuando-os. É preciso que sejamos livres para amar além do amor. Mas realmente livres, igualmente livres.

domingo, 22 de junho de 2014

Repensando "socialização masculina" - parte I

Em Sociologia socialização é o processo por meio do qual um indivíduo introjeta valores, hábitos, regras sociais e, em suma, a cultura de sua sociedade, de determinado grupo e de sua família. Socializar é uma ação que fica entre o ensino e a imposição. A socialização explica como a tradição se mantém através das décadas, como os valores são reiterados pelos indivíduos e como a sociedade sobrevive além de cada pessoa. Cada instituição, executando sua função socializadora, passa para frente aspectos fundamentais daquele agrupamento social. Nessa perspectiva, a socialização é um ensino que vem de fora para dentro, coagindo cada consciência a aceitá-lo.
Pensar a socialização dessa maneira, somente pelo viés da imposição, explica muito pouco sobre o funcionamento da sociedade, na verdade. Qual é o lugar da mudança (social e individual) nessa explicação?  Qual é o espaço para a agência dos indivíduos? Quer dizer que as pessoas simplesmente aceitam o que lhes é ensinado? Como surge então a crítica? Enfim, pensar a socialização como um processo que enfia a sociedade na cabeça do indivíduo é uma simplificação grosseira do que seria a manutenção da vida social. Como pensar sobre o que permanece sem com isso aniquilar o indivíduo no caminho?

Primeiro, deve-se pontuar que, sim, a socialização é um ensino, mas um ensino num sentido amplo. A ideia aqui não é a de que alguém vai falar e alguém vai ouvir, somente. É preciso que haja uma relação profunda com o conteúdo ensinado. A começar, é preciso, mais do que ordem, comprovação. Se alguém disse que fazendo algo determinada coisa vai acontecer e essa coisa de fato acontece, então temos um aprendizado significativo. Depois, é preciso entrar no sistema de recompensas. Ao fazer o que foi dito, recebe-se uma recompensa (que pode ser tão-somente não receber uma represália). Agora sim podemos entender como as pessoas são estimuladas (e não apenas coagidas!) a absorver e reproduzir determinados elementos de uma sociedade.
Uma lição da Linguística estrutural de Saussure é que os signos adquirem valor a partir da negação de outros signos: um signo é o que os outros signos não são (mais tarde a Sociologia estrutural de Bourdieu postulará: o real é relacional). Deste modo, podemos dizer - já partindo para o tema desse texto - que o masculino se define pelo que o feminino não é e vice-versa, uma vez que ambos estão numa relação dicotômica de valor. Indo além, podemos inferir que para aprender o que define os contornos do masculino, precisamos aprender o que ele não é, ou seja, precisamos aprender o que o feminino é. De outro modo: entender o que é masculino requer entender o que é feminino.
Doravante, o que se conclui é que não existe "socialização masculina" ou "socialização feminina", como se fossem substâncias específicas despejadas em nossas mentes a depender de ser homens ou mulheres (ou vistos enquanto tais); todas as pessoas tem uma socialização generificada (e binária), por assim dizer. Retomando tudo o que foi dito até aqui: não é como se simplesmente os meninos aprendessem o que devem fazer e o fizessem porque assim o aprenderam. O que ocorre é que há um ensino do que é cada gênero concomitante à entrada num sistema de recompensas, em que seguir o que é posto como correto dá acesso aos melhores bens simbólicos. Se o homem é forte, agressivo e independente, será bem recompensado por seus dotes masculinos. Se uma mulher é sensível, gentil e passiva, será bem recompensada por seus dotes femininos. Igualmente, divergir dessas características esperadas diminui o acesso a recompensas (gerando, inclusive, punições). No geral os homens são estimulados a ocuparem seu lugar de dominantes e as mulheres seu lugar de dominadas. Deve-se enfatizar aqui que mesmo as recompensas positivas das mulheres se dão dentro de uma relação de dominação e isso não deve ser diminuído, todavia isso não altera a equação.
Associar socialização ao sistema de recompensas nos deixa entender melhor os mecanismos de constante reavivamento da divisão de gêneros e as relações de poder aí contidas. Entendemos por que tantos homens e tantas mulheres reproduzem o machismo, mesmo sabendo que o machismo é limitador para todo mundo. Vendo por esse ângulo, uma mulher trans poderia, sim, carregar consigo algo de um "senso prático" (= saber como lidar no sistema de recompensas) masculino, mas isso não é destino. Isso quer dizer que essa mulher trans sabe, como as pessoas todas sabem, o que um homem (cis) deve fazer para se dar bem na sociedade. Quer dizer também que essa mulher trans já desafia uma dominação estabelecida (a transfobia, como backlash, é prova desse desafio). E quer dizer, finalmente, que existe um espaço de agência (= escolha) sob o peso de uma estrutura.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Bourdieu: estrutura e mudança

Uma lição que aprendi logo no início da graduação foi que para entender um/a autor/a é preciso entender os debates que ele/a trava. Ninguém escreve só, por si e para si. Saber quais são os termos do diálogo e o que cada pessoa defende é um bom caminho para conhecer limites e potencialidades de teorias. É menos no conteúdo e mais nos seus contornos que as teorias me interessam - e que de algum modo fazem sentido. Até porque teorias são, de certa maneira, esquemas explicativos da realidade - são caixinhas em que se enfia o Universo.


Tenho lido/estudado Pierre Bourdieu há uns três anos agora e uma crítica recorrente a seu esquema analítico é a de que, em sua obra, tudo se resumiria a uma estrutura fechada e que, por isso mesmo, nunca muda - isso e seu pessimismo. A crítica é pertinente, porém já encontra uma resposta na própria obra do autor e é isso que esse texto pretende discutir. Há mudança em Bourdieu? O que muda e o que não muda?
em breve nas bancas
Antes de tudo é preciso entender aspectos fundamentais da ideia de estrutura em Bourdieu: diz respeito a um arranjo de posições num determinado contexto social, funciona sob uma lógica própria e influencia (mas não determina!) as ações dos indivíduos. De outro modo: a estrutura é definida por contornos que só fazem sentido no conjunto de seus elementos. É por aí que surge a noção de campo. Usando uma metáfora do jogo: o campo são as regras e habitus é o senso do jogo. O campo é o regramento enquanto sentido ou funcionamento do jogo - ou seja, as regras não necessariamente precisam ser explicitadas e forçadas para que o jogo aconteça. O habitus se constitui como predisposições para agir, sentir e pensar. O habitus é essa espécie de senso  prático que possibilita aos sujeitos (na maior parte das vezes inconscientemente) fazer a coisa certa, na hora e no lugar certos - em suma: jogar conforme o jogo, ou o que esperam dele.
#nãovaitercopa
Conceitos postos, mencionemos que Bourdieu fala bastante em reprodução social, aliás, talvez seja esse o principal tema de toda sua obra. Reprodução social sendo, basicamente, o mecanismo por meio do qual a estrutura social se sustenta. Aqui já se vislumbra uma resposta às críticas mencionadas: Bourdieu foca na manutenção porque está preocupado em estudar a reprodução social (parece tautológico, mas não poderia ser diferente). Obviamente essa explicação não é suficiente. Para entender onde o autor vê tanta continuação - uma vez o mundo  muda o tempo todo - é preciso voltar à sua ideia de estrutura. Não se muda a estrutura se as regras do jogo e as posições nele ocupadas permanecem as mesmas. O conteúdo, ou melhor, a densidade da vida social (emprestando a ideia de Geertz) é o que se transforma com certa facilidade. Não é que Bourdieu descarte o simbólico - pelo contrário, esse é um elemento constitutivo de suas análises -, o que ocorre é que ele prefere/pretende buscar pelas relações de força. A quem gosta de dicotomias, apresento mais uma: significado/poder. Enfim, esse é outro debate.
Sahlins boladaço com a turminha do Foucault.
Resumindo o causo: acabar com a reprodução social que o sistema escolar engendra não é só garantir educação básica a todo mundo. Refletindo melhor, o que é "educação básica" tem se alterado com o passar dos anos e o nível dos títulos (diplomas) exigidos para conseguir bons empregos tem se elevado numa velocidade maior ainda. Sobe o nível considerado "básico" e se amplia demasiadamente o acesso ao "básico" - e até o que está pouco além dele -, todavia as pessoas das classes dominadas continuam tendo maiores dificuldades de alcançar os melhores empregos, são consideradas menos cultas etc. Alterou-se o conteúdo, mas a estrutura permanece a mesma. Num outro exemplo (tirado do livro A dominação masculina): mulheres tem conquistado diversos direitos com o decorrer da história, como o direito ao voto e um maior acesso à universidade e ao mercado de trabalho. Entretanto mulheres são minoria nos cargos de poder, estão majoritariamente nos cursos mais precarizados das universidades e ganham menos em relação aos homens. Ampliam-se direitos, mas a dominação masculina perdura. Essas dominações, como a de classe e gênero, perduram por séculos exatamente porque são adaptáveis aos diversos contextos: porque a estrutura social é mantida.
anarquismo queer?
Seria Bourdieu um Marx sem revolução? Não o creio. Até agora só o que vimos foi a manutenção da estrutura social. O que faz com que uma estrutura mude, então? Bem, não há resposta que não a via revolucionária: se a mudança da estrutura só se dá com a mudança de sua lógica, só mesmo o fim da estrutura é, de fato, mudança. Não se altera a dominação de classes se é mantido intacto o sistema que produz essa dominação - a saber: que distribui desigualmente os bens simbólicos, para ficar nos termos do autor. Não seria possível, também, pensar numa libertação das mulheres (libertação de fato, e não inclusão precária) que não se direcione para o fim da existência mesma do gênero, porque a dicotomia masculino/feminino é a linguagem por meio da qual a dominação se reitera. Dissidências seriam o desvio-padrão já contido na estrutura - ou seja: reforma. Para mudar é preciso destruir a estrutura: revolucionar!

sexta-feira, 28 de março de 2014

Nem biológico, nem social: é político

Grandes debates tem sido travados sobre os mais diversos assuntos por pessoas partidárias de explicações mais ligadas à Biologia (e demais áreas afins) e pessoas mais ligadas às Ciências Sociais (ou Humanas, de um modo geral). Recentemente me meti numa discussão sobre trocar o dia pela noite: seria esse um modo de vida anti-natural ou seria mais um passo na evolução? Confesso que esse tema pouco me importa, na realidade. Para os fins desse post, utilizarei como fio condutor um tema mais robusto do ponto de vista das possibilidades de análise: a (homo)sexualidade.

Antes de mais nada, pontuo que as variadas formas de explicação sobre o mundo (as verdades, ou as crenças, dá no mesmo) coexistem. Longe de mim querer retomar o evolucionismo comtiano. A ordem dos sistemas de legitimação das verdades a ser exposta é lógica, não necessariamente condiz com a história e certamemte não representa qualquer "evolução".

Isto posto, começo por uma forma de explicação que não aparece no título do post, mas é importantíssima: a religião. É sabido que por todo o mundo existe uma forte relação entre homofobia e cristianismo. Deve-se explicitar: muitas pessoas cristãs encontram no cristianismo a justificação da homofobia. Por muito tempo, inclusive, eu imaginava que posicionamentos "anti-aborto" e anti-homossexualide eram decorrentes das religiões, especialmente as cristãs. Num debate sobre direitos reprodutivos uma colega me apontou: se o posicionamento contra a descriminalização do aborto estivesse inextrincavelmente ligado à religião seria impossível a existência do movimento Católicas pelo direito de decidir, por exemplo. Existe aí algo maior que deve ser pensado: o controle sobre os corpos tidos como femininos encontra diversas justificativas, a religiosa "pró-vida" sendo apenas uma delas. Com a homossexualidade isso se repete: existem pessoas cristãs homossexuais e existem instituições cristãs mais abertas à inclusão de pessoas homossexuais. Inclusive o papa Francisco se mostrou aberto a repensar o posicionamemto do Vaticano em relação à homossexualidade, que até então permanece como "abominação". Ainda, há pessoas cristãs que usam do próprio cristianismo para combater a homofobia, especialmente com concepções de um deus mais amoroso do que punitivo. Todavia, Malafaias e Felicianos parecem ser maioria nesse meio.

Seguindo, temos a ciência. Se é verdade que ela não pôs fim à concepção religiosa (afinal, religiões ainda existem), deve-se admitir que criou um terreno de batalha com a religião no que concerne à legitmidade das explições sobre o mundo. Dizendo de outro modo: há uma disputa sobre o monopólio da produção da verdade. É preciso lembrar que a ciência como verdade na maior parte das vezes exclui as ciências humanas - a não ser que estas usem métodos aproximados aos das ciências "duras". Aqui a briga tem muito a ver com a ideia de neutralidade, e é exatamente a crença nessa neutralidade que confere boa parte da legitimidade, da veracidade, de que goza a ciência. Pois bem, retomando nosso fio condutor podemos pensar que a ideia de "homossexualismo" é uma concepção científica da sexualidade. Homossexualismo era o termo que dotava a prática sexual de caráter médico; uma doença, enfim. Como doença, o "homossexualismo" poderia ser tratado ou curado. Hoje se fala em homossexualidade, e não mais homossexualismo (ao menos "oficialmente"), mas o debate da sexualidade não deixa de flertar com a Biologia e áreas afins, vide a ideia de que se nasce gay ou lésbica (e não dá para mudar) e as eternas buscas pelo gene gay.

Aqui começa o embróglio sobre a sexualidade ser uma determinação da natureza ou uma construção social. A segunda explicação abre mais espaço para a legitimação de identidades não-monossexuais (cito aqui a bissexualidade). O debate entre social e biológico é extenso e, na maior parte das vezes, pouco proveitoso. Já tendo pontuado sobre a via da ciência "dura", faz-se relevante pensar nas possibilidades do construcionismo social. A princípio, voltemos à "cura gay" proposta por certas pessoas ligadas às ciências psi. Admitir que a sexualidade é mera construção social, mero comportamento, abre espaço para a ideia de que esse comportamento pode ser mudado. Afinal, o behaviourismo não morreu. É preciso ter cuidado também com um certo voluntarismo, como se as pessoas simplesmente optassem por essa ou aquela sexualidade, sem nenhuma pressão social. Quando "social" significar maleabilidade irrestrita e "biológico" significar determinação imutável, será preciso dizer que a questão não é nem biológica, nem social: é política.

E que quer dizer afinal a afirmação de que algo é político? Quer dizer que há poder envolvido no assunto. E poder enquanto forma de dominação e controle. Quando se fala em identidades políticas, esse é o tema: o entendimento de que determinado agrupamento de pessoas está sendo dominado em relação a determinado aspecto que as une. Voltando à homossexualidade, é preciso entender que existem diversas vivências e narrativas do que é ser lésbica. Dizer que lésbicas são pessoas com vagina que só se atraem por outras pessoas com vagina e só com essas pessoas se relacionam sexual-afetivamente seria excluir muitas narrativas sobre a lesbianidade. Ainda assim, parar de falar em lesbianidade não parece o caminho. Existe toda uma história de opressão e de resistências das mulheres lésbicas que não pode ser esquecida porque, afinal, a dominação se mantém. O estigma, por exemplo, é algo que recai sobre muitas meninas que não "se assumiram" ou mesmo das que nem são lésbicas. E começa no estigma, vai para a piada e termina em atrocidades como o "estupro corretivo".

Concluindo, nos debates que põem biológico x social é importante ter a noção política da questão (existem interesses que influenciam e/ou determinam certas explicações em favor de um grupo dominante?) e encontrar o meio termo nos extremos. Nem tabula rasa, nem máquinas pré-programadas; somos algo além. Pessoalmente, eu gosto bastante da resposta do antropólogo Marshall Sahlins para o embate natureza x cultura: a natureza diz o que a cultura não pode fazer.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Você vai acabar com a festa?

É sempre ruim ser a pessoa chata do grupinho. É um horror ser a pessoa que estraga a conversa. O legal é manter a comunicação, fazer com que as pessoas deem boas risadas e se sintam bem. Legal é manter o tom ameno da conversação, prezando pelo consenso - ou, no máximo, pelas discordâncias cordiais. Se no meio do caminho da sociabilidade descontraída tem uma pedra, uma crítica mais contundente ou mesmo uma pessoa se sentindo ofendida, é preciso que alguém tire a pedra do caminho, senão à força, muitas vezes usando do clássico:
Do documentário "O riso dos outros"
No meio do caminho de todo esse carpe diem tinha uma luta anti-opressiva. A diversão despreocupada se dá através do que está à mão e o que está à mão, na maior parte das vezes, é a tradição. Não é à toa que certa vez Laerte tenha comentado sobre a dificuldade de o humor ser revolucionário, uma vez que o gatilho para o riso se faz com o que já está estabelecido. De fato, comentar sobre a feiura da Globeleza ou das gordurinhas das passistas parece uma forma bacana de puxar papo, de jogar conversa fora. Se surgir uma piada de gay no meio, todo mundo ri, afinal, tem que ter bom humor, né? Bem... não. Quando se trata da reiteração de discursos opressivos, ter bom humor não é suficiente e discordar é preciso. E se você aponta o problema, acaba pagando de pessoa chata, mau humorada, que não sabe brincar e que se preocupa de mais. Por isso, para não acabar com uma imagem ruim, para não acabar com a festa, muita gente ri junto da piada depreciativa de pessoas deficientes - ou se não ri, se não concorda, se não incita, se cala. Isso precisa parar.
Buffy Transfeminista vem dizer o óbvio, porque nunca é o suficiente
É preciso que nos posicionemos frente a discursos opressivos, não porque isso vai acabar imediatamente com a opressão, ou vai fazer a pessoa mudar de ideia, mas porque é preciso rachar o consenso. Quando meio mundo (re)faz a piada da travesti enganadora de homens e fica por isso, parece que é certo. Parece que é normal. Parece que pode. Parece que não tem problema. E tem. Muito. Do mais direto: ofender a uma travesti. Ao mais sutil: se somar a tantos outros discursos que zombam e desumanizam as travestis, construindo uma tradição transfóbica. Quer dizer, o nosso silêncio quando discursos opressivos aparecem acaba sendo nosso aval. Se ninguém discordou quando eu disse que a travesti engana homens é porque eu estou sendo legal e ninguém discorda de mim, né? Não! E esse é o ponto. Nos sentimos sós para denunciar as opressões normalizadas, mas não lembramos que se eu por vezes me calo, se você por vezes se cala, se muita gente por vezes se cala, isso quer dizer que ainda que ninguém tenha questionado, muita gente seja contra esse tipo de zombaria. E é preciso questionar e contrapor porque, lembro aqui o óbvio: as pessoas pensam. E elas podem pensar contra o "consenso". Podem inclusive refletir sobre o assunto e mudar de opinião.
"Não alimente os trolls. Não responda a esse tópico, deixe-o cair até o fundo ou ser fechado."
É fato que muitas vezes as pessoas que incorrem em discursos opressivos, quando questionadas, começam a bradar coisas como "mas é a minha opinião!" e "hoje em dia tudo é preconceito, nossa!", isso quando não partem para xingamentos, sem que haja muita possibilidade de diálogo. Ainda assim, a política de "não alimente os trolls" não é eficiente. Quer dizer, é válido quando pensamos em autopreservação. Mas quando falamos em geração de mudança, em despertar de consciência, deixar a discordância de lado não é profícuo. Quando não questionamos, o que vinha sendo dito ou praticado é tido como correto e verdadeiro. Isso geralmente se dá: 1) porque são muitas as pessoas falando/fazendo coisas confluentes; 2) porque as pessoas falando/fazendo essas determinadas coisas tem mais legitimidade; 3) porque o que essas pessoas estão falando/fazendo é amplamente aceito, é hegemônico. Questionar é, então, colocar a hegemonia em xeque. E aqui resgato uma reflexão da Hannah Arendt sobre a banalidade do mal. As  piores atrocidades (e ela fala isso enquanto judia alemã que sofreu com o nazismo) são cometidas por quem estava apenas seguindo as regras. Arendt fez a cobertura do julgamento de Adolf Eichmman (tenente-coronel da SS que possibilitou o encaminhamento das pessoas para os campos de concentração) e ficou bastante surpresa ao perceber que Eichmann não era o monstro que ela imaginara - ele era surpreendentemente normal. Eichmann não odiava pessoas judias, nem tinha qualquer paixão pela carnificina, ele apenas seguia as ordens. Para Arendt, a falta de "pensamento", isto é, pensamento crítico, reflexão, questionamento das coisas é o que constitui a banalidade do mal. Em resumo: as pessoas não fazem o mal porque elas são doentes ou monstruosas, não fazem o mal porque tem paixão pela maldade; fazem o mal porque estão preocupadas em fazer as coisas "certas" sem questioná-las. Retomando a questão dos trolls, argumento aqui que é preciso questionar essas pessoas para apresentar alternativas não-opressivas de entendimento do mundo. Porque o cara que estupra não é um demônio, é um cara que cresceu ouvindo que para mulheres "não" quer dizer "sim" e que foi exposto sua vida inteira a piadas que dizem que estuprar mulher feia é lhe fazer um favor. Em suma, discutir com pessoas que incorrem em discursos e feitos opressivos é possibilitar com que 1) outras pessoas que pensam como você sintam-se encorajadas a também reagir; 2) a pessoa que falou/fez algo opressivo possa pensar e mudar de opinião, ou pelo menos perceber que aquilo não é unânime.
"Os Beastie Boys lutaram e provavelmente morreram pelo meu direito de festejar, então..."
Realmente, questionar discursos e feitos opressivos pode ser acabar com o clima da festa, da diversão. Criticar uma música, uma marchinha ou uma prática festiva é, de certo modo, acabar com a tradição. Temos que ter em mente, aqui, que nossa tradição foi construída pelo massacre de muitos dos grupos que estavam por baixo, bem como pelo esmagamento de suas culturas. E muitas de nossas festas são tradicionais no pior sentido da palavra: na conservação de práticas e símbolos opressivos. Então, é preciso acabar com a festa nesse sentido. Temos que interromper a folia das opressões, porque ela sistematicamente afasta ou machuca muitas pessoas. A diversão despreocupada é de quem, afinal? Certamente não da travesti que, se caso se relacionar com um homem durante o Carnaval (e não só!) pode ser violentada por tê-lo "enganado". Só criando essa sensibilização nas pessoas, nos mais diversos ambientes é possível produzir mudança. Obviamente mudança não é só a sucessão de críticas, mas mesmo a construção de "novas culturas". Nós podemos fazer outra festa, uma festa que resgate tradições que foram apagadas pelos grupos dominantes e que produza criações inovadoras. Podemos criar novas músicas, novas danças, novas fantasias. Comecemos trocando o "dói, um tapinha não dói" pelo "minha buceta é o poder". Ou ainda o "Ô Silvia, piranha!!!" por um "Puta é aquela que se dá pra quem se dá sem o seu / Aval misógino, mas meu corpo é meu". E assim sigamos. Questionando e construindo culturas não-opressivas. E você, nesse Carnaval vai acabar com a festa?