segunda-feira, 3 de março de 2014

Você vai acabar com a festa?

É sempre ruim ser a pessoa chata do grupinho. É um horror ser a pessoa que estraga a conversa. O legal é manter a comunicação, fazer com que as pessoas deem boas risadas e se sintam bem. Legal é manter o tom ameno da conversação, prezando pelo consenso - ou, no máximo, pelas discordâncias cordiais. Se no meio do caminho da sociabilidade descontraída tem uma pedra, uma crítica mais contundente ou mesmo uma pessoa se sentindo ofendida, é preciso que alguém tire a pedra do caminho, senão à força, muitas vezes usando do clássico:
Do documentário "O riso dos outros"
No meio do caminho de todo esse carpe diem tinha uma luta anti-opressiva. A diversão despreocupada se dá através do que está à mão e o que está à mão, na maior parte das vezes, é a tradição. Não é à toa que certa vez Laerte tenha comentado sobre a dificuldade de o humor ser revolucionário, uma vez que o gatilho para o riso se faz com o que já está estabelecido. De fato, comentar sobre a feiura da Globeleza ou das gordurinhas das passistas parece uma forma bacana de puxar papo, de jogar conversa fora. Se surgir uma piada de gay no meio, todo mundo ri, afinal, tem que ter bom humor, né? Bem... não. Quando se trata da reiteração de discursos opressivos, ter bom humor não é suficiente e discordar é preciso. E se você aponta o problema, acaba pagando de pessoa chata, mau humorada, que não sabe brincar e que se preocupa de mais. Por isso, para não acabar com uma imagem ruim, para não acabar com a festa, muita gente ri junto da piada depreciativa de pessoas deficientes - ou se não ri, se não concorda, se não incita, se cala. Isso precisa parar.
Buffy Transfeminista vem dizer o óbvio, porque nunca é o suficiente
É preciso que nos posicionemos frente a discursos opressivos, não porque isso vai acabar imediatamente com a opressão, ou vai fazer a pessoa mudar de ideia, mas porque é preciso rachar o consenso. Quando meio mundo (re)faz a piada da travesti enganadora de homens e fica por isso, parece que é certo. Parece que é normal. Parece que pode. Parece que não tem problema. E tem. Muito. Do mais direto: ofender a uma travesti. Ao mais sutil: se somar a tantos outros discursos que zombam e desumanizam as travestis, construindo uma tradição transfóbica. Quer dizer, o nosso silêncio quando discursos opressivos aparecem acaba sendo nosso aval. Se ninguém discordou quando eu disse que a travesti engana homens é porque eu estou sendo legal e ninguém discorda de mim, né? Não! E esse é o ponto. Nos sentimos sós para denunciar as opressões normalizadas, mas não lembramos que se eu por vezes me calo, se você por vezes se cala, se muita gente por vezes se cala, isso quer dizer que ainda que ninguém tenha questionado, muita gente seja contra esse tipo de zombaria. E é preciso questionar e contrapor porque, lembro aqui o óbvio: as pessoas pensam. E elas podem pensar contra o "consenso". Podem inclusive refletir sobre o assunto e mudar de opinião.
"Não alimente os trolls. Não responda a esse tópico, deixe-o cair até o fundo ou ser fechado."
É fato que muitas vezes as pessoas que incorrem em discursos opressivos, quando questionadas, começam a bradar coisas como "mas é a minha opinião!" e "hoje em dia tudo é preconceito, nossa!", isso quando não partem para xingamentos, sem que haja muita possibilidade de diálogo. Ainda assim, a política de "não alimente os trolls" não é eficiente. Quer dizer, é válido quando pensamos em autopreservação. Mas quando falamos em geração de mudança, em despertar de consciência, deixar a discordância de lado não é profícuo. Quando não questionamos, o que vinha sendo dito ou praticado é tido como correto e verdadeiro. Isso geralmente se dá: 1) porque são muitas as pessoas falando/fazendo coisas confluentes; 2) porque as pessoas falando/fazendo essas determinadas coisas tem mais legitimidade; 3) porque o que essas pessoas estão falando/fazendo é amplamente aceito, é hegemônico. Questionar é, então, colocar a hegemonia em xeque. E aqui resgato uma reflexão da Hannah Arendt sobre a banalidade do mal. As  piores atrocidades (e ela fala isso enquanto judia alemã que sofreu com o nazismo) são cometidas por quem estava apenas seguindo as regras. Arendt fez a cobertura do julgamento de Adolf Eichmman (tenente-coronel da SS que possibilitou o encaminhamento das pessoas para os campos de concentração) e ficou bastante surpresa ao perceber que Eichmann não era o monstro que ela imaginara - ele era surpreendentemente normal. Eichmann não odiava pessoas judias, nem tinha qualquer paixão pela carnificina, ele apenas seguia as ordens. Para Arendt, a falta de "pensamento", isto é, pensamento crítico, reflexão, questionamento das coisas é o que constitui a banalidade do mal. Em resumo: as pessoas não fazem o mal porque elas são doentes ou monstruosas, não fazem o mal porque tem paixão pela maldade; fazem o mal porque estão preocupadas em fazer as coisas "certas" sem questioná-las. Retomando a questão dos trolls, argumento aqui que é preciso questionar essas pessoas para apresentar alternativas não-opressivas de entendimento do mundo. Porque o cara que estupra não é um demônio, é um cara que cresceu ouvindo que para mulheres "não" quer dizer "sim" e que foi exposto sua vida inteira a piadas que dizem que estuprar mulher feia é lhe fazer um favor. Em suma, discutir com pessoas que incorrem em discursos e feitos opressivos é possibilitar com que 1) outras pessoas que pensam como você sintam-se encorajadas a também reagir; 2) a pessoa que falou/fez algo opressivo possa pensar e mudar de opinião, ou pelo menos perceber que aquilo não é unânime.
"Os Beastie Boys lutaram e provavelmente morreram pelo meu direito de festejar, então..."
Realmente, questionar discursos e feitos opressivos pode ser acabar com o clima da festa, da diversão. Criticar uma música, uma marchinha ou uma prática festiva é, de certo modo, acabar com a tradição. Temos que ter em mente, aqui, que nossa tradição foi construída pelo massacre de muitos dos grupos que estavam por baixo, bem como pelo esmagamento de suas culturas. E muitas de nossas festas são tradicionais no pior sentido da palavra: na conservação de práticas e símbolos opressivos. Então, é preciso acabar com a festa nesse sentido. Temos que interromper a folia das opressões, porque ela sistematicamente afasta ou machuca muitas pessoas. A diversão despreocupada é de quem, afinal? Certamente não da travesti que, se caso se relacionar com um homem durante o Carnaval (e não só!) pode ser violentada por tê-lo "enganado". Só criando essa sensibilização nas pessoas, nos mais diversos ambientes é possível produzir mudança. Obviamente mudança não é só a sucessão de críticas, mas mesmo a construção de "novas culturas". Nós podemos fazer outra festa, uma festa que resgate tradições que foram apagadas pelos grupos dominantes e que produza criações inovadoras. Podemos criar novas músicas, novas danças, novas fantasias. Comecemos trocando o "dói, um tapinha não dói" pelo "minha buceta é o poder". Ou ainda o "Ô Silvia, piranha!!!" por um "Puta é aquela que se dá pra quem se dá sem o seu / Aval misógino, mas meu corpo é meu". E assim sigamos. Questionando e construindo culturas não-opressivas. E você, nesse Carnaval vai acabar com a festa?

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