sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A internet e a vida mental

Há 110 anos Georg Simmel nos apresentava "A metrópole e a vida mental". Vendo uma modernidade de mudanças cada vez mais aceleradas e as cidades que cresciam, cresciam e trivializavam as relações sociais, Simmel deu origem ao texto fundacional dos estudos urbanos. A Sociologia e a Antropologia (e demais ciências sociais) começavam, então, a tentar compreender quais eram as implicações das novas configurações das cidades nas relações sociais e mesmo na vida das pessoas. Pensando em regiões morais que dividiam a cidade e numa atitude blasé, própria das pessoas citadinas entre si, o século XX esteve repleto de cientistas sociais olhando para as metrópoles com muita preocupação. A Escola de Chicago é um ótimo exemplo da grande preocupação com as "degradações" da vida na cidade: formação de gangues, delinquência juvenil, crime organizado, prostituição.
Bauman  até hoje chatiadésimo com a modernidade.
Se é verdade que as preocupações de Simmel e sua trupe eram cientificamente plausíveis (de fato, a vida nas grandes cidades e a "intensificação da vida mental" produziram e produzem efeitos peculiares nas relações sociais), é igualmente verdadeiro que muitas dessas preocupações vinham acompanhadas de uma visão um tanto quanto conservadora: que é isso que acontece hoje e está trivializando e destruindo a vida social? No texto supracitado, o próprio Simmel fala de um urbano contraposto a um rural. Enquanto o primeiro seria o lugar do distanciamento entre as pessoas, em que essas já não mais teriam contatos significativos, o segundo seria lugar de preservação das relações sociais - ainda que o próprio autor diga que a tendência é que a vida urbana contamine todas as formas sociais. Um século depois, já foram tecidas críticas tanto à ideia de um fim do rural, quanto à própria separação rural x urbano. Apesar de todas as preocupações, ainda hoje se fala em sociedade (ou vida social) nas grandes cidades. E Chicago sobreviveu às "degradações".
Chicago vivona em pleno 2013.
O fim do século XX, quando o crescimento das cidades não mais parecia apontar para o fim das relações sociais (e novas relações vinham se configurando), trouxe consigo o surgimento da internet. De sua popularização nos anos 90 até os dias atuais, muito se disse sobre a internet. A indústria musical estaria falida, as escolas e as lojas chegariam ao fim, no futuro seria tudo online; a vida social seria virtual. Ainda que seja cedo para tirar conclusões, hoje, quando vamos nos acostumando melhor ao "mundo virtual", podemos ver que, como tantas outras, essas previsões eram bastante alarmistas e exageradas. De algum modo aprendemos a conciliar o online o offline (há também quem questione a existência dessa separação). Bandas continuam fazendo seus shows, gravadoras ainda existem, e até mesmo CDs e DVDs persistem - mas agora sem os recordes de milhões de discos. Por vezes artistas tem lançado suas músicas de graça na internet, outras vezes ainda com o sistema de "pague com um tweet" (como faz Karina Buhr) ou mesmo deixando livre para a pessoa escolher quanto vai pagar (como fez o Radiohead com o In Rainbows). As escolas também perduram (ainda que se fale bastante numa crise da educação - que pouco tem a ver com a internet), tendo que lidar agora com todo o conteúdo online (inclusive resumos, resenhas e trabalhos inteiros prontos), mas também se apropriando das diversas possibilidades, como grupos no Facebook para viabilizar o contato e a troca de informações e conteúdos entre professorxs e estudantes, e com blogs que relatam a experiência em sala de aula e discutem novas abordagens pedagógicas. Enfim, o que se evidencia é que novas relações sociais são formadas, com suas possibilidades e seus problemas.
E aí, quem topa uma Terceira Guerra Mundial com WikiLeaks e as porra?
Dois prognósticos apocalípticos sobre a internet ainda persistem: o de que há uma espécie de conspiração mundial envolvendo a internet e o de que a internet, ou melhor, as redes sociais, estão destruindo as relações sociais. O primeiro tem visto determinadas concretizações ao longo dos anos, como a recente revelação de espionagem do governo brasileiro feita pelos EUA, sob supervisão de Obama. Ainda assim, tirando filmes de ficção e confabulações, estamos ainda por assistir grandes guerras virtuais ou, melhor ainda, a dominação das pessoas por seus aparelhos eletrônicos. O segundo prognóstico, a propósito, não deixa de ser um medo da dominação da pessoa pela máquina. É essa ideia de que as pessoas estão se tornando dependentes da tecnologia, estão acabando com as relações presenciais e ainda constituindo relações bastante superficiais online. É engraçado como não se fala em dominação de livros e jornais, ou do cinema. Aparentemente só o digital vicia e contamina, "ler um bom livro", ou melhor, "devorar livros" parece perfeitamente saudável. Ainda que, no fim, sejam todos artefatos.
"Toda essa tecnologia está nos tornando antissociais."
Por outro lado, é sempre complicado falar em fim das relações sociais, ou fim da "sociabilidade", como queira Simmel. Mesmo quando falamos em afastamento e superficialidade devemos ter cuidado. E nem falo do relativismo de deixar de medir a vivência do outro com a nossa, mas sim da idealização que é essa relação social que procuramos. Toda geração segue dizendo que no seu tempo a sociedade era melhor, que cada vez mais se perdem as verdadeiras relações sociais. E não é isso que estamos fazendo mais uma vez? Se é certo que não precisamos aceitar tudo o que a contemporaneidade nos oferece, é certo também que essa eterna nostalgia não nos serve de muita coisa - para além do que, talvez, esse mito que seguimos repetindo (de que o melhor está no passado) seja uma tentativa de frear a velocidade das transformações. O problema aí é quando a pisada é tão forte que o que se produz é não mais do que conservadorismo. Ah, mas essa juventude e suas formas estranhas e fúteis de viver a vida! Se vamos herdar algo da turminha de Chicago, que seja a destreza de Becker em entender os grupos (eu ampliaria: os contextos) em seus próprios termos. E eu fico aqui a pensar o que os especialistas da guetificação, com suas 1313 gangues, diriam hoje sobre os rolezinhos...


ah, mas daí seria anacronismo da minha parte!

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Feminismo é para todxs

bell hooks é uma escritora e feminista negra estadunidense que escreve, dentre outras coisas, sobre gênero, raça, classe, educação - e muito a partir de sua própria experiência enquanto mulher, enquanto negra, enquanto vinda de origem pobre, enquanto professora. Pois bem, desde que comecei a ler o Feminism is for everybody, da bell hooks, quis indicar para todo mundo. Afinal, a bell é uma escritora fantástica e o livro tenta elucidar a questão "o que é feminismo?" com uma leveza e ao mesmo tempo com uma complexidade muito grandes. O  problema é que o livro ainda não tem tradução para o português. Só hoje consegui pensar numa forma de resolver isso que não fosse por demais trabalhosa: traduzir os capítulos (cada um com pouco mais de cinco páginas) separadamente e aos poucos, juntando tudo ao final. A ideia original  é traduzir um capítulo por semana, mas veremos como isso vai ficar. Essa postagem em capítulos pode ajudar também para que se façam críticas e sugestões para compor a versão finalizada.

Então, faço meu o convite da bell hooks: "Chegue mais perto. Veja como o feminismo pode tocar e mudar sua vida e todas as nossas vidas. Chegue mais perto e saiba de primeira mão o que o movimento feminista é realmente. Chegue mais perto e você vai ver: feminismo é para todxs".

Link do pdf em inglês: Feminism is for everybody.
Link do pdf da introdução: Feminismo é para todxs - introdução.
Link do pdf do capítulo 1: Feminismo é para todxs - política feminista.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Amor livre ou livres do amor?

"Ah, se ela soubesse que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo por causa do amor"
Garota de Ipanema - Vinicius de Moraes

"Todas as canções falam de amor e de prazer,
sonhos e paixões que a gente sempre quis viver."
A casa ao lado - Pablo

"Eu lavava, passava,
tu não dava valor
Agora que eu sou puta você quer falar de amor."
Agora virei puta - Gaiola das Popozudas

O amor parece ser um elemento constituinte de quase todos os nossos mitos (no sentido antropológico do termo) atuais. Deus é amor; ame o próximo; te amo. Amor à religião, à família, à pátria, à causa, à vida, ao trabalho. E em sua forma extrema: o amor romântico. O sentimento universal, característica humana por excelência. Sendo assim, questionar o amor é sempre uma heresia. Experimente questionar o luto ou o incesto. Receberá reações adversas, certamente. Questionar o amor, todavia, é quase que ininteligível para a maioria das pessoas. Pensar criticamente sobre o amor é das tarefas mais difíceis, exatamente porque somos amor da cabeça aos pés. Morrer só - sem um xodó - é das imagens mais aterrorizantes de nossas vidas. O que é falta de amor senão frieza, amargura ou tristeza?
"Toda criatura nessa terra morre sozinha."
Questionar as relações interpessoais (em princípio, as relações heterossexuais) deu às feministas a fama de mal comidas - ou mal amadas. Quem são essas recalcadas que vieram meter a colher nas brigas de marido e mulher? Muitas críticas tem sido feitas, pelo viés feminista, à monogamia. Afinal, monogamia para quem? É fato que a traição masculina sempre foi bem mais tolerada (quando não louvada e incentivada) do que a traição feminina. Isso sem contar o papel secundário das mulheres na escolha dos maridos, bem como em toda a relação conjugal. Se a dominação masculina se faz presente em todas as relações sociais, é na relação marido&mulher que ela atinge seu ápice. A monogamia historicamente tem servido à lógica patriarcal. E o amor, vos digo, o amor é heterossexual.
"heterossexualidade é uma mentira"
O sexo compulsório (e aqui ressalto a importância das críticas feitas por feministas radicais sobre o tema) anda de mãos dadas com o amor compulsório na constituição da heterossexualidade compulsória. Mas não só. Os resquícios do amor (e do sexo) heteropatriarcal perduram mesmo nas relações homossexuais, mesmo naquelas sem a presença de homens. Além da compulsoriedade do amor romântico e do sexo penetrativo, a estrutura de casal permanece: no binário complementar e no ciúme possessivo. Disso se depreende duas coisas, pelo menos: individualismo e posse. Primeiro, individualismo porque o casal, progressivamente tornado uma coisa só, vive um egoísmo a dois: tudo se faz e se aceita pelx e para x parceirx. E posse porque a outra pessoa se torna um bem, que só pode ser propriedade de uma só pessoa. Ambas as coisas, quando não relacionadas diretamente ao heteropatriarcado, seguem os caminhos sinuosos da assimilação de pessoas sexodiversas nessa estrutura. Uma estrutura intrinsecamente liberal: individualista e fundada na propriedade privada. A lógica liberal é o sangue pulsante que oxigena o sistema capitalista e insere em nossos corações o sentimento próprio desse contexto: o amor. Na economia emocional o amor é capital.

Bem, se há problemas nessa forma de amor, qual é a solução? Em certo ponto, o contrário do egoísmo é  a solidariedade. E também a responsabilidade. E não falo só de solidariedade ou responsabilidade intra-conjugal, porque isso o amor romântico emula muito bem. Nada que seja apenas intra-conjugal é suficiente. Assim como nada que seja apenas individual é suficiente. Porque, retomando uma certa cosmogonia platônica, o indivíduo só seria completo quando encontrasse sua metade. Nesse sentido, um indivíduo de uma pessoa só ou de duas pessoas que se amam são a mesma coisa, afinal. Se tudo é válido para que a pessoa ou o casal se sinta bem e confortável, isso é ruim. Não há possibilidade de solidariedade e responsabilidade reais (porque sociais e não individuais) em relacionamentos em que o casal é um fim em si. Ainda, até que ponto o próprio ato de fechar o relacionamento não é, em si, um ato de cercar a propriedade e exercer o domínio e estabelecer regras sobre esta?
"O que te excita, 'princesa'?"
"Justiça"
Como qualquer tentativa de subversão, tentar amar livremente tem diversas coerções e incômodos, desde os mais íntimos (como lidar com esse sentimento tão arraigado que é o ciúme) aos institucionais. Não é à toa que por vezes a tentativa de subversão do amor liberal (não confundir com amor livre) acaba se tornando uma pegação generalizada (que não é problema em si, mas tende a estar aliada com, de novo, a compulsoriedade do sexo) ou um regime de relacionamento semi-aberto. Esse último também não é problema em si, mas traz preocupações. Até que ponto não nos acomodamos nesses relacionamentos de transição? Digo, quanto mais próximxs estamos da norma - mesmo sendo a norma o que nos mutila e nos aprisiona -, menos cerceamentos teremos. Ponho esse ponto como "preocupação" porque tentar ditar formas de subversão às outras pessoas se distancia bastante de quaisquer ideias de autonomia e liberdade. E porque, de novo, é preciso enfatizar o caráter contraditório da luta e da resistência.

No fim, acho que o importante mesmo é pensar em criar relações interpessoais que sejam mais solidárias e responsáveis, com ou sem amor, com ou sem sexo também. E não deixar que amores sejam os fins em si de nossas vidas, de nossas lutas. Se viver é amar e amar é algo bom, então amemos a luta, porque nenhum sentimento é sincero, nenhuma relação pode ser liberta enquanto houver dominações. Não existirá liberdade enquanto hierarquias e opressões existirem. Do mesmo modo, amor livre numa sociedade desigual não é só insuficiente, mas não passa de uma farsa.
A revolução é o meu namorado.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A treta como micropolítica

Se de algum modo o primeiro post foi sobre construção, esse será sobre desconstrução. Apesar do que, se afirmação e negação são só duas faces da dialética, construir e desconstruir são empreendimentos semelhantes, correlacionados e interdependentes. Ainda, se o conflito é só o que pode gerar mudanças, a treta é indispensável. 
Considero aqui "tretas" como críticas generalizadas e incisivas, que tendem ao debate acalorado. Tretas começam com discordâncias e logo vão evidenciando posicionamentos (políticos). Por vezes a treta se dá por fora do debate dito "racional" e linear. Pensando numa genealogia da treta através da própria filosofia ocidental (ainda que seja um empreendimento de certo modo colonizatório), podemos chegar à Grécia Antiga como berço do que viria a ser a treta. O próprio método dialético socrático se dá por meio do embate de ideias, do confronto. O problema dessa filosofia é que se pretende chegar a uma ideia verdadeira, perfeita.
Por uma descolonização do saber.
Um outro ponto importante na genealogia da treta é a retomada marxista do aprendizado pelo diálogo, com a pedagogia crítica (tendo Paulo Freire como grande mestre). O ponto central é, de novo, pensar no debate, no confronto de ideias, como o método por meio do qual o conhecimento pode ser produzido. Bem, aqui há muitas pontuações a serem feitas, mas fico só com a observação de que mesmo essa abordagem crítica acaba levando à produção de verdades - ainda que para a transformação social. O que a própria filosofia marxista pontua (com o materialismo), todavia, é que as ideias estão historicamente situadas. É nesse sentido, de contextualizar as ideias que, por meio da arqueologia de saberes, Foucault propõe um novo regime da verdade. 
"Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo"
A análise foucaultiana também possibilita entender como o poder não é algo concentrado numa entidade social única, central, mas, antes, se distribui pelas relações sociais, ou melhor, se dá por meio destas. A ideia (que me parece emprestada da Física, de algum modo) é de que o poder não se detém, mas se exerce. E não quero aqui me alongar em qualquer tentativa de explicação maior do que seria uma "microfísica do poder" para além de uma análise do poder enquanto descentralizado e permeando as relações sociais de um modo geral. Pois bem, é nesse sentido que penso numa micropolítica.
massa fera
Assim como se pensa no fazer política (geralmente relacionado a lutas institucionais e/ou partidárias) penso que é possível pensar num fazer micropolítica. Se por um lado os movimentos classistas, na sua aliança quase que inseparável com o marxismo, acabaram direcionando suas críticas ao Estado (quando não ao governo), de algum modo os ditos "novos movimentos sociais" abrem uma possibilidade maior de combate descentralizado. De algum modo é a distinção que se faz entre luta institucional (que envolveria maior relação com o Estado) e a luta cultural (que envolveria maior enfoque nas relações sociais). Os movimentos identitários de um modo geral tiveram um papel importante de mostrar que o pessoal é político. O feminismo em especial propôs um olhar mais detido sobre as relações interpessoais, focando nas assimetrias e nos elementos de dominação presentes aí. Como movimento prático-teórico, o feminismo (e já adianto que meu foco no feminismo tem mais a ver com interesse pessoal no tema do que qualquer tentativa de hierarquização), em suas várias vertentes, pôs questões relevantes à política institucional não só em forma de demandas, mas questionando suas próprias estruturas, assim como questionou diversos aspectos das relações humanas (e não humanas, como vemos com o ecofeminismo), incluindo o próprio conhecimento - daí o surgimento de epistemologias feministas. 
Se esses próprios movimentos identitários tem sido visto como treteiros (quando não violentos mesmo) é porque instituíram um fazer micropolítica que foge à linearidade e às expectativas do convencional fazer política. O membro do movimento negro que interrompe o evento de lançamento dum livro sobre (=contra) cotas raciais (que só tinha gente branca E contra as cotas com direito à fala) para se posicionar é o exemplo mais evidente que posso dar. "Dá licença que o senhor está sendo mal educado", responde o autor (branco) do livro contra cotas raciais. Eu responderia, como a Marisa Monte, que "aqui nessa casa ninguém quer a sua boa educação". A boa educação, a racionalidade, a ordem e a paz constituem elementos silenciadores de tentativas de conciliação. Na militância partidária a treta interna é comumente vista como sectarismo. De algum modo, o que a tradição republicana nos regalou foi esse desejo pelo consenso. É nesse sentido que o fazer micropolítica, enquanto produção de dissenso é tão condenável. Mas seria isso a produção de dissenso ou a explicitação de conflitos? Bem, de certo modo já trazido pelo Leviatã hobbesiano apaziguador dos conflitos mortais e consolidado na porção mais republicana de Maquiavel, na instituição da burocracia estatal como mediadora dos conflitos e produtora da estabilidade, parece que se criou um lugar e um momento para a disputa. Tudo o que está fora disso é treta.

A treta como micropolítica seria, pois, a retomada da crítica radical e generalizada. Bem, o fazer micropolítica pode estar associado aos movimentos sociais, mas não só. Se a treta é o que pode pôr abaixo o regime de verdades estabelecidas, é preciso que o próprio conflito (não mediado) seja visto como  possibilidade de complexificação do conhecimento. Digo, se concordamos que o debate é positivo e produtivo, que há de ruim com a treta? As tretas virtuais talvez sejam as mais comumente criticadas. Porque elas ocupam um lugar que supostamente não deveriam ocupar. Tretas de internet são como debates acalorados em assembleias, ou como trocas de cartas entre autorxs. Exceto que acontecem em lugares inesperados. Com as redes sociais, as discussões de internet saíram dos tópicos específicos dos fóruns virtuais e passaram a se localizar na própria vida virtual das pessoas (a saber: tweets, postagens, comentários). "O pessoal é político" conseguiu alguma legitimidade. Talvez seja hora de dizer: "o virtual é político". A internet, enquanto produção humana, não se dá por fora de seu contexto histórico e das relações sociais que se estabelecem. O poder se traduz em bytes e pixels. Se a internet não se descola das relações sociais concretas e, portanto, das relações de poder, ela é palco constante de conflitos e pode ser um espaço importante da luta cognitiva. E se há algo de potencialmente revolucionário na internet, que faz com que seja o local por excelência das tretas, é sua capacidade de expandir e complexificar os debates, desfocando os limites entre o privado e o público e pondo à prova o que seria "só uma opinião pessoal". O pessoal é político, o virtual é político e a treta é a micropolítica da mudança.

domingo, 27 de outubro de 2013

Razão humana e especismo. Dominação e luta.

Introduzo a postagem com um relato sobre minha entrada no vegetarianismo, que diz bastante sobre minha forma de encarar as coisas. Bem, eu costumava pegar revistas da minha prima (Capricho e Atrevida, no geral) atrás de reportagens sobre bandas e letras de músicas. Folheava toda a revista e vez ou outra achava alguma matéria interessante. Dessa vez tinha uma matéria sobre vegetarianas falando sobre vegetarianismo. Com uma explicação sobre o que era ovolactovegetarianismo, o que era veganismo etc. Li com curiosidade, porque nunca havia visto nada daquilo. Nunca havia pensado sobre aquilo. Digo, comer carne nunca havia me parecido uma coisa problemática. Enfim, parar de comer carne nunca foi algo que passou pela minha cabeça até aquele momento, foi uma surpresa saber que algumas pessoas não comiam carne. E foi um insight: poxa, animais morrem para que eu possa comer carne. Na mesma hora decidi que não ia mais comer carne (mas fui parando aos poucos, pra família não se chocar tanto). 

Com a abstenção do consumo de carne vieram as pressões. As piadinhas e a justificativas. De todos os lados. Minhas avós diziam que Deus fez os animais pra gente comer mesmo (Ah, é: a esse ponto eu já era ateu, então nem me incomodava com essa). Algumas pessoas diziam se importar com minha saúde: "mas e as proteínas?". E conforme os anos foram passando e meu vegetarianismo foi sendo posto (seja numa negação da carne oferecida ou num debate mesmo), as questões se multiplicavam: não come carne, mas come soja; contribui pra monocultura. Como é que você sabe que os animais sentem dor, que sofrem, que tem alguma consciência do que está acontecendo? Oras, a espécie humana precisou de carne pra evoluir. E a alface, você não tem dó dela??? 

Quando fui morar só, entrei no veganismo, como havia planejado. As questões aumentavam ainda mais. Você acha que dá mesmo pra sociedade não explorar animais em nenhum aspecto? Se quer se vegano mesmo, vai viver no mato, esperando a fruta cair do pé. Que contadição, um vegano tomar Coca-cola. E a famigerada imagem:


É, há muitas questões postas ao veg(etari)anismo. Já adianto que de muitas delas eu compartilho. É preciso pensar que certas alternativas a determinados produtos de origem animal podem acabar por favorecer a exploração de certas populações, por exemplo. Não dá pra lutar contra uma forma de dominação e favorecer outra, concordo. Bem, acho que críticas são necessárias. Dentro e fora dos ativismos. É preciso estar atentx à crítica constante. Mas a crítica não é o suficiente. E eu não digo isso por dizer, não é uma frase pronta. Me levou bastante tempo pra entender isso. No primeiro ano de graduação, eu fiquei totalmente apático em relação ao Movimento Estudantil por isso. Eu não concordava com o que era feito e como era feito e me abstive. Em conversas com um amigo que queria montar chapa pro Centro Acadêmico de Ciências Sociais, acabei percebendo que ficar do meu cantinho tecendo maravilhosas críticas ao ME (para mim e para ele que me ouvia) não iria mudar merda nenhuma. Se eu não me mobilizasse a participar, certamente as coisas não tomariam a forma que eu achava necessária. Eu continuaria pra sempre criticando de fora e as pessoas fariam o que elas quisessem fazer. Ir lá e discutir com as pessoas, tentar construir algo me dava mais chances de mudar o que eu queria mudar do que nem me aproximar e ficar com o olhar hipercrítico de longe. Num balanço, não acho que eu tenho conseguido mudar completamente o ME e o MECS, nem sei qual foi minha relevância nesse sentido (nem acho que todas as coisas do mundo tenham que ser do meu jeito). Mas eu tenho a certeza de que me pus, de que tentei, de que expus meus posicionamentos. A lição que ficou pra mim foi: menos parar pra pensar e mais pensar agindo. Menos Zizek, mais Marx.


Disse tudo isso pra tornar mais compreensível de onde falo e o que quero dizer: é muito legal, muito positivo criticar, questionar os veg(etari)anismos, mas não é suficiente. Enquanto as pessoas ficam procurando supostas falhas lógicas que invalidem o veganismo, animais continuam sendo aprisionados, torturados e mortos. Por isso, não me importam muito justificativas nutricionais ou evolutivas pro consumo de carne. Tampouco me importam driblagens morais e filosóficas que façam com que explorar animais seja ok. E não importam porque o cientificismo e esse pé seguro na razão humana nos trouxeram até os dias de hoje: preconceitos, explorações, assassinatos, opressões. Foi a razão que promoveu a eugenia nazista (e tantas outras). Foi a razão humana que considerou a homossexualidade uma doença e ainda patologiza a transexualidade. É a razão humana que disse - e ainda diz - que há diferenças essenciais entre homens e mulheres - biológicas, neurológicas, psicológicas, você escolhe - e que por motivos meramente naturais homens são superiores. Não são falhas na razão. É a "razão humana" em si. Essa razão tão sólida, que herdamos de Kant e Descartes, deve ser posta em xeque. Uma amiga transfeminista comentava outro dia comigo: é preciso que se faça uma ciência para o bem. Concordo com isso. E nesse ponto sou foucaultiano: não precisamos de novas verdades, precisamos de um novo regime de verdades. Quando o Eli Vieira vem e apresenta "justificativas genéticas" para a transexualidade, por exemplo, e pessoas transfeministas e não-binárias são contrárias, é por isso: inserir mais uma vez identidades sob o domínio do biopoder, do controle científico, não é o caminho. Nesse caso específico, o caminho tem mais a ver com auto-identificação e autonomia dos sujeitos. E aí, pensando mesmo em grupos oprimidos, eu tenho receios mesmo com a própria categoria de "humanidade" (que tem grande equivalência com a de "cidadania"). É recorrente, na história, pessoas serem oprimidas por não entrarem na categoria de ser humano. Indígenas, negrxs, mulheres, homossexuais, transexuais. Já vimos isso antes. Aliás, mesmo hoje essa humanidade/cidadania desses sujeitos é precária. Não quero aqui igualar sistemas de dominação, que ocorrem cada qual de maneira bastante específica. Mas a dominação tem se dado com alguns elementos em comum. Tirar da categoria de "humano" pra deixar a dominação culturalmente justificável é um deles.

Certa vez eu disse, numa discussão: "não importa o que disserem, os fatos que trouxerem; vou continuar sendo feminista" (usei "feminista" como sinônimo de acreditar que existe uma opressão das mulheres e que sou contra isso). Bem, esses meus "posicionamentos religiosos", como podem argumentar, são, penso, posicionamentos radicais. Não acho que dê pra pensar que mulheres são oprimidas das mais diversas maneiras (incluindo coisas óbvias como espancamento e estupro) e tentar argumentar que "ah, mas elas não tem que se alistar pro exército" ou que "ah, mas elas pagam menos nas festas". Não dá também pra detectar que racismo existe e não ser a favor de políticas anti-racistas, pensando que cotas raciais seriam um privilégio, por exemplo. Esses recursos retóricos tem muita força porque, bem, coadunam com os sistemas de dominação. A apatia, a imobilização que vem com eles também. Oras, se concordamos que existe racismo, porque então adotar uma postura colorblind? Por que não propor ação nenhuma de combate/reparação, como se vivêssemos numa democracia racial? Pelo medo de errar? Pelo medo de não fazer com que as coisas sejam perfeitas e então acabem de uma vez por todas com a dominação? Veja bem, certamente não fazer nada não é o que vai contribuir pra mudança, não é mesmo?
versão zuera

versão acadimia

Venho lendo A Política Sexual da Carne, da Carol J. Adams, e tenho presenciado críticas constantes a ações em favor de animais (não humanos) e tenho ficado incomodado, daí a razão da postagem. Nem vi as notícias, mas já concordo que resgatar só os animais fofos não era o suficiente, há algo de problemático aí. Também não acho que parar de comer carne e continuar se utilizando de diversos produtos que provém da exploração e morte de animais seja suficiente. Mas que é isso, desde quando é preciso uma "coerência moral total" pra algo ser válido? Essa deslegitimação da luta, ainda mais vindo de colegas ativistas e militantes, me aborrece. As lutas contra sistemas de dominação são, todas elas, retalhadas e contraditórias. E quanto mais tomo consciência disso, mais entendo que é preciso lutar. A complexidade da luta não deve conduzir à apatia (muito se diz que o feminismo tem muitas disputas internas, e por isso algumas pessoas deixam de discutir feminismo, ou recusam o movimento, a denominação). A complexidade e contrariedade da luta é mesmo a justificativa de que a luta deve acontecer. Oras, sistemas de dominação perpassam pelos mais diversos aspectos de nossa vida, de nossa cultura, e é assim que eles se mantém. Através de instituições, mas não só. Nossa vivência em muito é permeada por essas relações de poder. Tomar isso como justificativa pra se acomodar é sucumbir à dominação, é dar o aval para que ela aconteça. Se é certo que falar é doloroso, o silêncio é a morte. Ou o assassinato.