domingo, 22 de junho de 2014

Repensando "socialização masculina" - parte I

Em Sociologia socialização é o processo por meio do qual um indivíduo introjeta valores, hábitos, regras sociais e, em suma, a cultura de sua sociedade, de determinado grupo e de sua família. Socializar é uma ação que fica entre o ensino e a imposição. A socialização explica como a tradição se mantém através das décadas, como os valores são reiterados pelos indivíduos e como a sociedade sobrevive além de cada pessoa. Cada instituição, executando sua função socializadora, passa para frente aspectos fundamentais daquele agrupamento social. Nessa perspectiva, a socialização é um ensino que vem de fora para dentro, coagindo cada consciência a aceitá-lo.
Pensar a socialização dessa maneira, somente pelo viés da imposição, explica muito pouco sobre o funcionamento da sociedade, na verdade. Qual é o lugar da mudança (social e individual) nessa explicação?  Qual é o espaço para a agência dos indivíduos? Quer dizer que as pessoas simplesmente aceitam o que lhes é ensinado? Como surge então a crítica? Enfim, pensar a socialização como um processo que enfia a sociedade na cabeça do indivíduo é uma simplificação grosseira do que seria a manutenção da vida social. Como pensar sobre o que permanece sem com isso aniquilar o indivíduo no caminho?

Primeiro, deve-se pontuar que, sim, a socialização é um ensino, mas um ensino num sentido amplo. A ideia aqui não é a de que alguém vai falar e alguém vai ouvir, somente. É preciso que haja uma relação profunda com o conteúdo ensinado. A começar, é preciso, mais do que ordem, comprovação. Se alguém disse que fazendo algo determinada coisa vai acontecer e essa coisa de fato acontece, então temos um aprendizado significativo. Depois, é preciso entrar no sistema de recompensas. Ao fazer o que foi dito, recebe-se uma recompensa (que pode ser tão-somente não receber uma represália). Agora sim podemos entender como as pessoas são estimuladas (e não apenas coagidas!) a absorver e reproduzir determinados elementos de uma sociedade.
Uma lição da Linguística estrutural de Saussure é que os signos adquirem valor a partir da negação de outros signos: um signo é o que os outros signos não são (mais tarde a Sociologia estrutural de Bourdieu postulará: o real é relacional). Deste modo, podemos dizer - já partindo para o tema desse texto - que o masculino se define pelo que o feminino não é e vice-versa, uma vez que ambos estão numa relação dicotômica de valor. Indo além, podemos inferir que para aprender o que define os contornos do masculino, precisamos aprender o que ele não é, ou seja, precisamos aprender o que o feminino é. De outro modo: entender o que é masculino requer entender o que é feminino.
Doravante, o que se conclui é que não existe "socialização masculina" ou "socialização feminina", como se fossem substâncias específicas despejadas em nossas mentes a depender de ser homens ou mulheres (ou vistos enquanto tais); todas as pessoas tem uma socialização generificada (e binária), por assim dizer. Retomando tudo o que foi dito até aqui: não é como se simplesmente os meninos aprendessem o que devem fazer e o fizessem porque assim o aprenderam. O que ocorre é que há um ensino do que é cada gênero concomitante à entrada num sistema de recompensas, em que seguir o que é posto como correto dá acesso aos melhores bens simbólicos. Se o homem é forte, agressivo e independente, será bem recompensado por seus dotes masculinos. Se uma mulher é sensível, gentil e passiva, será bem recompensada por seus dotes femininos. Igualmente, divergir dessas características esperadas diminui o acesso a recompensas (gerando, inclusive, punições). No geral os homens são estimulados a ocuparem seu lugar de dominantes e as mulheres seu lugar de dominadas. Deve-se enfatizar aqui que mesmo as recompensas positivas das mulheres se dão dentro de uma relação de dominação e isso não deve ser diminuído, todavia isso não altera a equação.
Associar socialização ao sistema de recompensas nos deixa entender melhor os mecanismos de constante reavivamento da divisão de gêneros e as relações de poder aí contidas. Entendemos por que tantos homens e tantas mulheres reproduzem o machismo, mesmo sabendo que o machismo é limitador para todo mundo. Vendo por esse ângulo, uma mulher trans poderia, sim, carregar consigo algo de um "senso prático" (= saber como lidar no sistema de recompensas) masculino, mas isso não é destino. Isso quer dizer que essa mulher trans sabe, como as pessoas todas sabem, o que um homem (cis) deve fazer para se dar bem na sociedade. Quer dizer também que essa mulher trans já desafia uma dominação estabelecida (a transfobia, como backlash, é prova desse desafio). E quer dizer, finalmente, que existe um espaço de agência (= escolha) sob o peso de uma estrutura.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Bourdieu: estrutura e mudança

Uma lição que aprendi logo no início da graduação foi que para entender um/a autor/a é preciso entender os debates que ele/a trava. Ninguém escreve só, por si e para si. Saber quais são os termos do diálogo e o que cada pessoa defende é um bom caminho para conhecer limites e potencialidades de teorias. É menos no conteúdo e mais nos seus contornos que as teorias me interessam - e que de algum modo fazem sentido. Até porque teorias são, de certa maneira, esquemas explicativos da realidade - são caixinhas em que se enfia o Universo.


Tenho lido/estudado Pierre Bourdieu há uns três anos agora e uma crítica recorrente a seu esquema analítico é a de que, em sua obra, tudo se resumiria a uma estrutura fechada e que, por isso mesmo, nunca muda - isso e seu pessimismo. A crítica é pertinente, porém já encontra uma resposta na própria obra do autor e é isso que esse texto pretende discutir. Há mudança em Bourdieu? O que muda e o que não muda?
em breve nas bancas
Antes de tudo é preciso entender aspectos fundamentais da ideia de estrutura em Bourdieu: diz respeito a um arranjo de posições num determinado contexto social, funciona sob uma lógica própria e influencia (mas não determina!) as ações dos indivíduos. De outro modo: a estrutura é definida por contornos que só fazem sentido no conjunto de seus elementos. É por aí que surge a noção de campo. Usando uma metáfora do jogo: o campo são as regras e habitus é o senso do jogo. O campo é o regramento enquanto sentido ou funcionamento do jogo - ou seja, as regras não necessariamente precisam ser explicitadas e forçadas para que o jogo aconteça. O habitus se constitui como predisposições para agir, sentir e pensar. O habitus é essa espécie de senso  prático que possibilita aos sujeitos (na maior parte das vezes inconscientemente) fazer a coisa certa, na hora e no lugar certos - em suma: jogar conforme o jogo, ou o que esperam dele.
#nãovaitercopa
Conceitos postos, mencionemos que Bourdieu fala bastante em reprodução social, aliás, talvez seja esse o principal tema de toda sua obra. Reprodução social sendo, basicamente, o mecanismo por meio do qual a estrutura social se sustenta. Aqui já se vislumbra uma resposta às críticas mencionadas: Bourdieu foca na manutenção porque está preocupado em estudar a reprodução social (parece tautológico, mas não poderia ser diferente). Obviamente essa explicação não é suficiente. Para entender onde o autor vê tanta continuação - uma vez o mundo  muda o tempo todo - é preciso voltar à sua ideia de estrutura. Não se muda a estrutura se as regras do jogo e as posições nele ocupadas permanecem as mesmas. O conteúdo, ou melhor, a densidade da vida social (emprestando a ideia de Geertz) é o que se transforma com certa facilidade. Não é que Bourdieu descarte o simbólico - pelo contrário, esse é um elemento constitutivo de suas análises -, o que ocorre é que ele prefere/pretende buscar pelas relações de força. A quem gosta de dicotomias, apresento mais uma: significado/poder. Enfim, esse é outro debate.
Sahlins boladaço com a turminha do Foucault.
Resumindo o causo: acabar com a reprodução social que o sistema escolar engendra não é só garantir educação básica a todo mundo. Refletindo melhor, o que é "educação básica" tem se alterado com o passar dos anos e o nível dos títulos (diplomas) exigidos para conseguir bons empregos tem se elevado numa velocidade maior ainda. Sobe o nível considerado "básico" e se amplia demasiadamente o acesso ao "básico" - e até o que está pouco além dele -, todavia as pessoas das classes dominadas continuam tendo maiores dificuldades de alcançar os melhores empregos, são consideradas menos cultas etc. Alterou-se o conteúdo, mas a estrutura permanece a mesma. Num outro exemplo (tirado do livro A dominação masculina): mulheres tem conquistado diversos direitos com o decorrer da história, como o direito ao voto e um maior acesso à universidade e ao mercado de trabalho. Entretanto mulheres são minoria nos cargos de poder, estão majoritariamente nos cursos mais precarizados das universidades e ganham menos em relação aos homens. Ampliam-se direitos, mas a dominação masculina perdura. Essas dominações, como a de classe e gênero, perduram por séculos exatamente porque são adaptáveis aos diversos contextos: porque a estrutura social é mantida.
anarquismo queer?
Seria Bourdieu um Marx sem revolução? Não o creio. Até agora só o que vimos foi a manutenção da estrutura social. O que faz com que uma estrutura mude, então? Bem, não há resposta que não a via revolucionária: se a mudança da estrutura só se dá com a mudança de sua lógica, só mesmo o fim da estrutura é, de fato, mudança. Não se altera a dominação de classes se é mantido intacto o sistema que produz essa dominação - a saber: que distribui desigualmente os bens simbólicos, para ficar nos termos do autor. Não seria possível, também, pensar numa libertação das mulheres (libertação de fato, e não inclusão precária) que não se direcione para o fim da existência mesma do gênero, porque a dicotomia masculino/feminino é a linguagem por meio da qual a dominação se reitera. Dissidências seriam o desvio-padrão já contido na estrutura - ou seja: reforma. Para mudar é preciso destruir a estrutura: revolucionar!