segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Amor livre ou livres do amor?

"Ah, se ela soubesse que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo por causa do amor"
Garota de Ipanema - Vinicius de Moraes

"Todas as canções falam de amor e de prazer,
sonhos e paixões que a gente sempre quis viver."
A casa ao lado - Pablo

"Eu lavava, passava,
tu não dava valor
Agora que eu sou puta você quer falar de amor."
Agora virei puta - Gaiola das Popozudas

O amor parece ser um elemento constituinte de quase todos os nossos mitos (no sentido antropológico do termo) atuais. Deus é amor; ame o próximo; te amo. Amor à religião, à família, à pátria, à causa, à vida, ao trabalho. E em sua forma extrema: o amor romântico. O sentimento universal, característica humana por excelência. Sendo assim, questionar o amor é sempre uma heresia. Experimente questionar o luto ou o incesto. Receberá reações adversas, certamente. Questionar o amor, todavia, é quase que ininteligível para a maioria das pessoas. Pensar criticamente sobre o amor é das tarefas mais difíceis, exatamente porque somos amor da cabeça aos pés. Morrer só - sem um xodó - é das imagens mais aterrorizantes de nossas vidas. O que é falta de amor senão frieza, amargura ou tristeza?
"Toda criatura nessa terra morre sozinha."
Questionar as relações interpessoais (em princípio, as relações heterossexuais) deu às feministas a fama de mal comidas - ou mal amadas. Quem são essas recalcadas que vieram meter a colher nas brigas de marido e mulher? Muitas críticas tem sido feitas, pelo viés feminista, à monogamia. Afinal, monogamia para quem? É fato que a traição masculina sempre foi bem mais tolerada (quando não louvada e incentivada) do que a traição feminina. Isso sem contar o papel secundário das mulheres na escolha dos maridos, bem como em toda a relação conjugal. Se a dominação masculina se faz presente em todas as relações sociais, é na relação marido&mulher que ela atinge seu ápice. A monogamia historicamente tem servido à lógica patriarcal. E o amor, vos digo, o amor é heterossexual.
"heterossexualidade é uma mentira"
O sexo compulsório (e aqui ressalto a importância das críticas feitas por feministas radicais sobre o tema) anda de mãos dadas com o amor compulsório na constituição da heterossexualidade compulsória. Mas não só. Os resquícios do amor (e do sexo) heteropatriarcal perduram mesmo nas relações homossexuais, mesmo naquelas sem a presença de homens. Além da compulsoriedade do amor romântico e do sexo penetrativo, a estrutura de casal permanece: no binário complementar e no ciúme possessivo. Disso se depreende duas coisas, pelo menos: individualismo e posse. Primeiro, individualismo porque o casal, progressivamente tornado uma coisa só, vive um egoísmo a dois: tudo se faz e se aceita pelx e para x parceirx. E posse porque a outra pessoa se torna um bem, que só pode ser propriedade de uma só pessoa. Ambas as coisas, quando não relacionadas diretamente ao heteropatriarcado, seguem os caminhos sinuosos da assimilação de pessoas sexodiversas nessa estrutura. Uma estrutura intrinsecamente liberal: individualista e fundada na propriedade privada. A lógica liberal é o sangue pulsante que oxigena o sistema capitalista e insere em nossos corações o sentimento próprio desse contexto: o amor. Na economia emocional o amor é capital.

Bem, se há problemas nessa forma de amor, qual é a solução? Em certo ponto, o contrário do egoísmo é  a solidariedade. E também a responsabilidade. E não falo só de solidariedade ou responsabilidade intra-conjugal, porque isso o amor romântico emula muito bem. Nada que seja apenas intra-conjugal é suficiente. Assim como nada que seja apenas individual é suficiente. Porque, retomando uma certa cosmogonia platônica, o indivíduo só seria completo quando encontrasse sua metade. Nesse sentido, um indivíduo de uma pessoa só ou de duas pessoas que se amam são a mesma coisa, afinal. Se tudo é válido para que a pessoa ou o casal se sinta bem e confortável, isso é ruim. Não há possibilidade de solidariedade e responsabilidade reais (porque sociais e não individuais) em relacionamentos em que o casal é um fim em si. Ainda, até que ponto o próprio ato de fechar o relacionamento não é, em si, um ato de cercar a propriedade e exercer o domínio e estabelecer regras sobre esta?
"O que te excita, 'princesa'?"
"Justiça"
Como qualquer tentativa de subversão, tentar amar livremente tem diversas coerções e incômodos, desde os mais íntimos (como lidar com esse sentimento tão arraigado que é o ciúme) aos institucionais. Não é à toa que por vezes a tentativa de subversão do amor liberal (não confundir com amor livre) acaba se tornando uma pegação generalizada (que não é problema em si, mas tende a estar aliada com, de novo, a compulsoriedade do sexo) ou um regime de relacionamento semi-aberto. Esse último também não é problema em si, mas traz preocupações. Até que ponto não nos acomodamos nesses relacionamentos de transição? Digo, quanto mais próximxs estamos da norma - mesmo sendo a norma o que nos mutila e nos aprisiona -, menos cerceamentos teremos. Ponho esse ponto como "preocupação" porque tentar ditar formas de subversão às outras pessoas se distancia bastante de quaisquer ideias de autonomia e liberdade. E porque, de novo, é preciso enfatizar o caráter contraditório da luta e da resistência.

No fim, acho que o importante mesmo é pensar em criar relações interpessoais que sejam mais solidárias e responsáveis, com ou sem amor, com ou sem sexo também. E não deixar que amores sejam os fins em si de nossas vidas, de nossas lutas. Se viver é amar e amar é algo bom, então amemos a luta, porque nenhum sentimento é sincero, nenhuma relação pode ser liberta enquanto houver dominações. Não existirá liberdade enquanto hierarquias e opressões existirem. Do mesmo modo, amor livre numa sociedade desigual não é só insuficiente, mas não passa de uma farsa.
A revolução é o meu namorado.

3 comentários:

  1. q texto legal cara, me lembrou dessa musica :] http://www.youtube.com/watch?v=nAb89KAm3Zs

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  2. Muuuito interessante seu post! Vontade de imprimir e sair pregando por aí pra ver se entra na pauta dos debates ...
    rsrsrs

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