quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A treta como micropolítica

Se de algum modo o primeiro post foi sobre construção, esse será sobre desconstrução. Apesar do que, se afirmação e negação são só duas faces da dialética, construir e desconstruir são empreendimentos semelhantes, correlacionados e interdependentes. Ainda, se o conflito é só o que pode gerar mudanças, a treta é indispensável. 
Considero aqui "tretas" como críticas generalizadas e incisivas, que tendem ao debate acalorado. Tretas começam com discordâncias e logo vão evidenciando posicionamentos (políticos). Por vezes a treta se dá por fora do debate dito "racional" e linear. Pensando numa genealogia da treta através da própria filosofia ocidental (ainda que seja um empreendimento de certo modo colonizatório), podemos chegar à Grécia Antiga como berço do que viria a ser a treta. O próprio método dialético socrático se dá por meio do embate de ideias, do confronto. O problema dessa filosofia é que se pretende chegar a uma ideia verdadeira, perfeita.
Por uma descolonização do saber.
Um outro ponto importante na genealogia da treta é a retomada marxista do aprendizado pelo diálogo, com a pedagogia crítica (tendo Paulo Freire como grande mestre). O ponto central é, de novo, pensar no debate, no confronto de ideias, como o método por meio do qual o conhecimento pode ser produzido. Bem, aqui há muitas pontuações a serem feitas, mas fico só com a observação de que mesmo essa abordagem crítica acaba levando à produção de verdades - ainda que para a transformação social. O que a própria filosofia marxista pontua (com o materialismo), todavia, é que as ideias estão historicamente situadas. É nesse sentido, de contextualizar as ideias que, por meio da arqueologia de saberes, Foucault propõe um novo regime da verdade. 
"Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo"
A análise foucaultiana também possibilita entender como o poder não é algo concentrado numa entidade social única, central, mas, antes, se distribui pelas relações sociais, ou melhor, se dá por meio destas. A ideia (que me parece emprestada da Física, de algum modo) é de que o poder não se detém, mas se exerce. E não quero aqui me alongar em qualquer tentativa de explicação maior do que seria uma "microfísica do poder" para além de uma análise do poder enquanto descentralizado e permeando as relações sociais de um modo geral. Pois bem, é nesse sentido que penso numa micropolítica.
massa fera
Assim como se pensa no fazer política (geralmente relacionado a lutas institucionais e/ou partidárias) penso que é possível pensar num fazer micropolítica. Se por um lado os movimentos classistas, na sua aliança quase que inseparável com o marxismo, acabaram direcionando suas críticas ao Estado (quando não ao governo), de algum modo os ditos "novos movimentos sociais" abrem uma possibilidade maior de combate descentralizado. De algum modo é a distinção que se faz entre luta institucional (que envolveria maior relação com o Estado) e a luta cultural (que envolveria maior enfoque nas relações sociais). Os movimentos identitários de um modo geral tiveram um papel importante de mostrar que o pessoal é político. O feminismo em especial propôs um olhar mais detido sobre as relações interpessoais, focando nas assimetrias e nos elementos de dominação presentes aí. Como movimento prático-teórico, o feminismo (e já adianto que meu foco no feminismo tem mais a ver com interesse pessoal no tema do que qualquer tentativa de hierarquização), em suas várias vertentes, pôs questões relevantes à política institucional não só em forma de demandas, mas questionando suas próprias estruturas, assim como questionou diversos aspectos das relações humanas (e não humanas, como vemos com o ecofeminismo), incluindo o próprio conhecimento - daí o surgimento de epistemologias feministas. 
Se esses próprios movimentos identitários tem sido visto como treteiros (quando não violentos mesmo) é porque instituíram um fazer micropolítica que foge à linearidade e às expectativas do convencional fazer política. O membro do movimento negro que interrompe o evento de lançamento dum livro sobre (=contra) cotas raciais (que só tinha gente branca E contra as cotas com direito à fala) para se posicionar é o exemplo mais evidente que posso dar. "Dá licença que o senhor está sendo mal educado", responde o autor (branco) do livro contra cotas raciais. Eu responderia, como a Marisa Monte, que "aqui nessa casa ninguém quer a sua boa educação". A boa educação, a racionalidade, a ordem e a paz constituem elementos silenciadores de tentativas de conciliação. Na militância partidária a treta interna é comumente vista como sectarismo. De algum modo, o que a tradição republicana nos regalou foi esse desejo pelo consenso. É nesse sentido que o fazer micropolítica, enquanto produção de dissenso é tão condenável. Mas seria isso a produção de dissenso ou a explicitação de conflitos? Bem, de certo modo já trazido pelo Leviatã hobbesiano apaziguador dos conflitos mortais e consolidado na porção mais republicana de Maquiavel, na instituição da burocracia estatal como mediadora dos conflitos e produtora da estabilidade, parece que se criou um lugar e um momento para a disputa. Tudo o que está fora disso é treta.

A treta como micropolítica seria, pois, a retomada da crítica radical e generalizada. Bem, o fazer micropolítica pode estar associado aos movimentos sociais, mas não só. Se a treta é o que pode pôr abaixo o regime de verdades estabelecidas, é preciso que o próprio conflito (não mediado) seja visto como  possibilidade de complexificação do conhecimento. Digo, se concordamos que o debate é positivo e produtivo, que há de ruim com a treta? As tretas virtuais talvez sejam as mais comumente criticadas. Porque elas ocupam um lugar que supostamente não deveriam ocupar. Tretas de internet são como debates acalorados em assembleias, ou como trocas de cartas entre autorxs. Exceto que acontecem em lugares inesperados. Com as redes sociais, as discussões de internet saíram dos tópicos específicos dos fóruns virtuais e passaram a se localizar na própria vida virtual das pessoas (a saber: tweets, postagens, comentários). "O pessoal é político" conseguiu alguma legitimidade. Talvez seja hora de dizer: "o virtual é político". A internet, enquanto produção humana, não se dá por fora de seu contexto histórico e das relações sociais que se estabelecem. O poder se traduz em bytes e pixels. Se a internet não se descola das relações sociais concretas e, portanto, das relações de poder, ela é palco constante de conflitos e pode ser um espaço importante da luta cognitiva. E se há algo de potencialmente revolucionário na internet, que faz com que seja o local por excelência das tretas, é sua capacidade de expandir e complexificar os debates, desfocando os limites entre o privado e o público e pondo à prova o que seria "só uma opinião pessoal". O pessoal é político, o virtual é político e a treta é a micropolítica da mudança.

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