domingo, 27 de outubro de 2013

Razão humana e especismo. Dominação e luta.

Introduzo a postagem com um relato sobre minha entrada no vegetarianismo, que diz bastante sobre minha forma de encarar as coisas. Bem, eu costumava pegar revistas da minha prima (Capricho e Atrevida, no geral) atrás de reportagens sobre bandas e letras de músicas. Folheava toda a revista e vez ou outra achava alguma matéria interessante. Dessa vez tinha uma matéria sobre vegetarianas falando sobre vegetarianismo. Com uma explicação sobre o que era ovolactovegetarianismo, o que era veganismo etc. Li com curiosidade, porque nunca havia visto nada daquilo. Nunca havia pensado sobre aquilo. Digo, comer carne nunca havia me parecido uma coisa problemática. Enfim, parar de comer carne nunca foi algo que passou pela minha cabeça até aquele momento, foi uma surpresa saber que algumas pessoas não comiam carne. E foi um insight: poxa, animais morrem para que eu possa comer carne. Na mesma hora decidi que não ia mais comer carne (mas fui parando aos poucos, pra família não se chocar tanto). 

Com a abstenção do consumo de carne vieram as pressões. As piadinhas e a justificativas. De todos os lados. Minhas avós diziam que Deus fez os animais pra gente comer mesmo (Ah, é: a esse ponto eu já era ateu, então nem me incomodava com essa). Algumas pessoas diziam se importar com minha saúde: "mas e as proteínas?". E conforme os anos foram passando e meu vegetarianismo foi sendo posto (seja numa negação da carne oferecida ou num debate mesmo), as questões se multiplicavam: não come carne, mas come soja; contribui pra monocultura. Como é que você sabe que os animais sentem dor, que sofrem, que tem alguma consciência do que está acontecendo? Oras, a espécie humana precisou de carne pra evoluir. E a alface, você não tem dó dela??? 

Quando fui morar só, entrei no veganismo, como havia planejado. As questões aumentavam ainda mais. Você acha que dá mesmo pra sociedade não explorar animais em nenhum aspecto? Se quer se vegano mesmo, vai viver no mato, esperando a fruta cair do pé. Que contadição, um vegano tomar Coca-cola. E a famigerada imagem:


É, há muitas questões postas ao veg(etari)anismo. Já adianto que de muitas delas eu compartilho. É preciso pensar que certas alternativas a determinados produtos de origem animal podem acabar por favorecer a exploração de certas populações, por exemplo. Não dá pra lutar contra uma forma de dominação e favorecer outra, concordo. Bem, acho que críticas são necessárias. Dentro e fora dos ativismos. É preciso estar atentx à crítica constante. Mas a crítica não é o suficiente. E eu não digo isso por dizer, não é uma frase pronta. Me levou bastante tempo pra entender isso. No primeiro ano de graduação, eu fiquei totalmente apático em relação ao Movimento Estudantil por isso. Eu não concordava com o que era feito e como era feito e me abstive. Em conversas com um amigo que queria montar chapa pro Centro Acadêmico de Ciências Sociais, acabei percebendo que ficar do meu cantinho tecendo maravilhosas críticas ao ME (para mim e para ele que me ouvia) não iria mudar merda nenhuma. Se eu não me mobilizasse a participar, certamente as coisas não tomariam a forma que eu achava necessária. Eu continuaria pra sempre criticando de fora e as pessoas fariam o que elas quisessem fazer. Ir lá e discutir com as pessoas, tentar construir algo me dava mais chances de mudar o que eu queria mudar do que nem me aproximar e ficar com o olhar hipercrítico de longe. Num balanço, não acho que eu tenho conseguido mudar completamente o ME e o MECS, nem sei qual foi minha relevância nesse sentido (nem acho que todas as coisas do mundo tenham que ser do meu jeito). Mas eu tenho a certeza de que me pus, de que tentei, de que expus meus posicionamentos. A lição que ficou pra mim foi: menos parar pra pensar e mais pensar agindo. Menos Zizek, mais Marx.


Disse tudo isso pra tornar mais compreensível de onde falo e o que quero dizer: é muito legal, muito positivo criticar, questionar os veg(etari)anismos, mas não é suficiente. Enquanto as pessoas ficam procurando supostas falhas lógicas que invalidem o veganismo, animais continuam sendo aprisionados, torturados e mortos. Por isso, não me importam muito justificativas nutricionais ou evolutivas pro consumo de carne. Tampouco me importam driblagens morais e filosóficas que façam com que explorar animais seja ok. E não importam porque o cientificismo e esse pé seguro na razão humana nos trouxeram até os dias de hoje: preconceitos, explorações, assassinatos, opressões. Foi a razão que promoveu a eugenia nazista (e tantas outras). Foi a razão humana que considerou a homossexualidade uma doença e ainda patologiza a transexualidade. É a razão humana que disse - e ainda diz - que há diferenças essenciais entre homens e mulheres - biológicas, neurológicas, psicológicas, você escolhe - e que por motivos meramente naturais homens são superiores. Não são falhas na razão. É a "razão humana" em si. Essa razão tão sólida, que herdamos de Kant e Descartes, deve ser posta em xeque. Uma amiga transfeminista comentava outro dia comigo: é preciso que se faça uma ciência para o bem. Concordo com isso. E nesse ponto sou foucaultiano: não precisamos de novas verdades, precisamos de um novo regime de verdades. Quando o Eli Vieira vem e apresenta "justificativas genéticas" para a transexualidade, por exemplo, e pessoas transfeministas e não-binárias são contrárias, é por isso: inserir mais uma vez identidades sob o domínio do biopoder, do controle científico, não é o caminho. Nesse caso específico, o caminho tem mais a ver com auto-identificação e autonomia dos sujeitos. E aí, pensando mesmo em grupos oprimidos, eu tenho receios mesmo com a própria categoria de "humanidade" (que tem grande equivalência com a de "cidadania"). É recorrente, na história, pessoas serem oprimidas por não entrarem na categoria de ser humano. Indígenas, negrxs, mulheres, homossexuais, transexuais. Já vimos isso antes. Aliás, mesmo hoje essa humanidade/cidadania desses sujeitos é precária. Não quero aqui igualar sistemas de dominação, que ocorrem cada qual de maneira bastante específica. Mas a dominação tem se dado com alguns elementos em comum. Tirar da categoria de "humano" pra deixar a dominação culturalmente justificável é um deles.

Certa vez eu disse, numa discussão: "não importa o que disserem, os fatos que trouxerem; vou continuar sendo feminista" (usei "feminista" como sinônimo de acreditar que existe uma opressão das mulheres e que sou contra isso). Bem, esses meus "posicionamentos religiosos", como podem argumentar, são, penso, posicionamentos radicais. Não acho que dê pra pensar que mulheres são oprimidas das mais diversas maneiras (incluindo coisas óbvias como espancamento e estupro) e tentar argumentar que "ah, mas elas não tem que se alistar pro exército" ou que "ah, mas elas pagam menos nas festas". Não dá também pra detectar que racismo existe e não ser a favor de políticas anti-racistas, pensando que cotas raciais seriam um privilégio, por exemplo. Esses recursos retóricos tem muita força porque, bem, coadunam com os sistemas de dominação. A apatia, a imobilização que vem com eles também. Oras, se concordamos que existe racismo, porque então adotar uma postura colorblind? Por que não propor ação nenhuma de combate/reparação, como se vivêssemos numa democracia racial? Pelo medo de errar? Pelo medo de não fazer com que as coisas sejam perfeitas e então acabem de uma vez por todas com a dominação? Veja bem, certamente não fazer nada não é o que vai contribuir pra mudança, não é mesmo?
versão zuera

versão acadimia

Venho lendo A Política Sexual da Carne, da Carol J. Adams, e tenho presenciado críticas constantes a ações em favor de animais (não humanos) e tenho ficado incomodado, daí a razão da postagem. Nem vi as notícias, mas já concordo que resgatar só os animais fofos não era o suficiente, há algo de problemático aí. Também não acho que parar de comer carne e continuar se utilizando de diversos produtos que provém da exploração e morte de animais seja suficiente. Mas que é isso, desde quando é preciso uma "coerência moral total" pra algo ser válido? Essa deslegitimação da luta, ainda mais vindo de colegas ativistas e militantes, me aborrece. As lutas contra sistemas de dominação são, todas elas, retalhadas e contraditórias. E quanto mais tomo consciência disso, mais entendo que é preciso lutar. A complexidade da luta não deve conduzir à apatia (muito se diz que o feminismo tem muitas disputas internas, e por isso algumas pessoas deixam de discutir feminismo, ou recusam o movimento, a denominação). A complexidade e contrariedade da luta é mesmo a justificativa de que a luta deve acontecer. Oras, sistemas de dominação perpassam pelos mais diversos aspectos de nossa vida, de nossa cultura, e é assim que eles se mantém. Através de instituições, mas não só. Nossa vivência em muito é permeada por essas relações de poder. Tomar isso como justificativa pra se acomodar é sucumbir à dominação, é dar o aval para que ela aconteça. Se é certo que falar é doloroso, o silêncio é a morte. Ou o assassinato.

Um comentário:

  1. Eu vivo num eterno dilema pelo fato de adorar animais e consumir carne. Não consigo simplesmente ignorar o processo, mas também parte de mim consegue ignorar o fato e consumir. Embora meu consumo seja pouco referente à maioria dos que e conheço, ainda assim é consumo. E acho que quando ocorre persistência sobre o assunto (como foi o caso dos beagles, frequente em várias rodas de discussão) planta-se a semente.
    Assim como antigamente eu me calava diante de uma situação que considerava obviamente machista, hoje em dia não mais. E acredito que com muita gente ocorreu o mesmo. Não é porque fomos educados com tais costumes que precisamos arrásta-los uma vida inteira.

    bjs,
    Re.

    ResponderExcluir