segunda-feira, 15 de junho de 2015

Até onde vai o marxismo no combate às opressões?

Escrevo esse texto para tentar me resolver com São Marx, procurando seu lugar no século XXI, em especial no entendimento das opressões. Utilizarei gênero, raça e sexualidade em diálogo com classe (ainda que, como ficará evidente, eu descambe para as feministas quase sempre). As classificações dos usos do marxismo são arbitrárias.

que o bom velhinho nos proteja
Primeiro temos o marxismo como classicamente se apresenta: a classe como centralidade, o capitalismo como inimigo. Se o trabalho é a dominação do homem sobre a natureza (o que o constitui como ser humano - o que o liberta), no capitalismo trabalho também é dominação do homem sobre o homem (o que o constitui como explorado - o que o aprisiona). Essa é a contradição fundamental do capitalismo. Assim, constituem-se duas classes antagônicas: a que detém os meios de produção (burguesia) e a que não detém os meios de produção e vende sua força de trabalho (proletariado). Sendo o pólo explorado, o proletariado é a força motriz da revolução que libertará todos os seres humanos (afinal, a dominação do homem sobre o homem aprisiona tanto quem domina, quanto quem é dominado): a derrubada do capitalismo, implementação da transição socialista e chegada ao comunismo. O comunismo é o lugar da liberdade, pois representa o fim da dominação do homem sobre o homem. O que são as opressões nessa visão? Em suma, formas do capitalismo intensificar ou organizar a exploração de classe. As mulheres servem (ao capitalismo) como contribuição para reprodução da força de trabalho (uma vez que cuidam de seus maridos sem receber nada), por isso são relegadas ao doméstico (para interpretações mais cuidadosas indico Christine Delphy e Nancy Fraser). E como se explica a opressão que sofre a população LGBT? Num vídeo muito didático, Amanda Palha, militante trans e comunista, explica como o capitalismo cria sujeitos abjetos, que valem menos no mercado de trabalho. Isso explica como travestis estão, em sua maioria, na prostituição (profissão essa sem regulamentação) ou em trabalhos pauperizados (cita-se geralmente o telemarketing como exemplo). No fim, todas as opressões são formas concretas de realização da luta de classes e, por isso, o foco central das lutas contra as opressões deve ser o fim do capitalismo.

Do outro lado temos o marxismo em forma, mas não em conteúdo. Ou melhor, um materialismo que não se baseia na economia. Penso principalmente em Catherine MacKinnon, quando esta troca os termos da análise marxista para uma feminista. O esquema é: (1) fundamento da condição humana > (2) divisão da sociedade > (3) dominante > (4) dominado > (5) instrumento da dominação. No marxismo clássico, o esquema fica assim: (1) trabalho > (2) classe > (3) burguesia > (4) proletariado > (5) produção. No feminismo, o esquema é: (1) sexualidade > (2) heterossexualidade > (3) homem > (4) mulher > (5) desejo. No caso de raça, cabem aqui teorias que põem o racismo como fundamento de todas as dominações (onde racismo é visto como primeira criação de diferenças entre humanos) e o antirracismo pan-africanista. Por vezes caindo sob a alcunha de pós-marxistas, essas explicações preservam do marxismo o materialismo (no sentido de que a opressão se funda em relações concretas), o estruturalismo (porque a vida social se constitui reproduzindo determinadas estruturas) e a ideia de totalidade (aquela opressão em específico perpassa todas as relações e é fundante), ainda que nem sempre a perspectiva revolucionária. O inimigo é o próprio sistema de dominação em específico (sexismo, racismo, "LGBTfobia").
Num terceiro momento temos o que vou chamar de marxismo acessório (que é a interseccionalidade, na verdade). Digo aqui de uma visão de classe como uma das categorias de opressão. Nessa visão, as opressões funcionam segundo lógicas próprias, produzindo experiências específicas e que se cruzam no meio do caminho. Uma mulher negra sofreria com as consequências do sexismo e com as consequências do racismo. Fosse pobre e periférica ainda, aí mesmo estaria numa encruzilhada das opressões. O cruzamento das opressões não só gera "somas" das opressões, mas opressões específicas. Autoras como Kimberle Crenshaw e Adriana Piscitelli são nomes reconhecidos nas análises interseccionais. O objetivo dessa abordagem é esmiuçar a realidade social buscando entender e solucionar as formas concretas (e portanto específicas) em que se dão as opressões. O marxismo surge aqui como uma explicação relevante, mas não suficiente da dominação (nem mesmo da de classe, que deve levar em conta outras categorias). Os inimigos são vários, provavelmente o inimigo é o próprio poder (o fundamento das dominações).
Cada uma dessas abordagens tem contribuições gigantescas, assim como problemas profundos. O marxismo clássico tem grande papel em mudanças sociais concretas, o que se deve bastante à aliança de teoria e prática (as diversas organizações de esquerda, em especial as partidárias são o meu foco aqui). Todavia, o marxismo tomado dessa maneira apaga (ou subsume) quaisquer desigualdades que não as de classe. Assim, todos os problemas parecem poder ser resolvidos com o bom e velho socialismo. Oras, não me parece que homofobia e misoginia possam ser satisfatoriamente explicadas pela luta de classes. Assassinatos de homossexuais e estupros de mulheres, por exemplo, só podem ser explicados por vias econômicas se deixarmos de lado as especificidades que levam tal atrocidades a acontecer - e que nos levam a questões mais complicadas também: importa a classe de quem estupra? Existe mulher negra burguesa?
O marxismo formal, por outro lado, é excelente para entender as opressões em específico e, mais do que isso, para a organização política, conseguindo elaborar pautas muito bem definidas (vejamos como os feminismos, movimentos LGBT e antirracistas se tornam mais objetivos quando suas análises e, portanto, demandas se tornam "autossuficientes"). Entretanto, se no marxismo clássico classe é o fundamento de toda a dominação, aqui gênero (ou sexo), sexualidade ou raça se tornam as categorias fundantes de todas as clivagens da vida social. De saída temos um problema: não podemos considerar mais de uma categoria como fundante. Vimos isso acima com classe. O feminismo negro, por exemplo, surge numa crítica ferrenha à tomada da categoria mulher como universal/unívoca (ou seja, gênero como uma categoria "pura"), o que apaga as especificidades e necessidades de diversas mulheres.

O marxismo acessório, por fim, tenta (com alguma dificuldade, é verdade, dado o tamanho do empreendimento) responder às críticas ao marxismo formal com análises interseccionais - isto é, análises que consideram como as diversas opressões interagem. Essa perspectiva é importante porque dá visibilidade a diversos grupos que ficam sempre nas frestas: a mulher negra não aparecia de fato nem no antirracismo (que tomava o negro como masculino), nem no feminismo (que tomava a mulher como branca). Assim, movimentos específicos se articulam - vemos surgir grupos de mulheres indígenas, transfeminismos, coletivos LGBT comunistas e assim por diante. Essa polifonia, porém, falha em produzir o que é essencial ao marxismo: uma perspectiva revolucionária concreta. No fim, praticamente todo mundo pode ser categorizado como dominante ou dominado, dependendo das variáveis que tomamos. Para o marxismo clássico, esse é possivelmente o maior problema do pós-estruturalismo (e por vezes do "pós-modernismo").
eis a grande pergunta
É, camaradas, não há resposta fácil. Se correr para revolução armada, acabamos por alvejar quem já está na merda. Se reformamos aqui e ali, de forma lenta, gradual e segura, deixamos muita gente na merda, mas em vias de tirá-las de lá (num futuro longínquo porém "democrático"). Nancy Fraser sugere um socialismo desconstrutivista; Judith Butler sugere subversão. Se é impossível chegar a uma síntese que satisfaça todas as críticas, o que se torna explícito é que o marxismo tem seu lugar nas discussões contemporâneas sobre combate às opressões - nem que seja para ficar ali do lado, cobrando uma proletarização da luta. Creio que seja a hora de deixar a teoria ser informada pela prática, para que novas teorias possam guiar novas práticas. Citando a Jéssica Ipólito: "Eu não quero as raízes, eu quero as flores!". Eu acredito é nos movimentos sociais.

Um comentário:

  1. A análise é muito boa, mas sinto que falta explicitar os limites históricos dos três marxismos. Colocar os três em pé de comparação sem apontar as particularidades históricas cada um faz parecer que todos eles são universalmente equivalentes, o que é impossível. Gosto dos seus textos, mas sempre me parece que falta um posicionamento definido. Isso decepciona o leitor.

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